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— Você não sabe como foi difícil convencer meus irmãos de que eu conseguiria lidar com a situação. Depois de permitir que um deles estivesse sempre comigo quando eu precisasse sair para algum lugar, ficou mais fácil. Eu fiquei tão feliz... acho que foi o único momento em que eu realmente descobri o que acontecia comigo — minha voz falha, e eu desvio meu olhar do dele, procurando por forças no ambiente quieto e familiar da cozinha.

Dói falar para ele, contar do passado que eu penso que sempre definirá meu futuro. Eu sou a vítima de um abusador. A vítima de um relacionamento abusivo e violento.

Nunca deixei que as pessoas soubessem, não apenas por causa da vergonha que eu sinto, mas também porque a maioria delas não entende. Quando se está dentro da dinâmica deste tipo de relacionamento, você vive em uma realidade difícil de ser confrontada de dentro. É como se você tivesse amarras em todo seu ser que te impedem de ver que você está em um relacionamento abusivo.

— Eu sempre soube que meu relacionamento era difícil, mas não achava que fosse diferente dos outros. Eu não tinha experiência, não tinha amigos para olharem para nós dois e falarem que algo errado estava acontecendo. Minha família era ótima, mas Fernando era ainda melhor em esconder deles qualquer coisa errada que havia entre nós.

Uma lágrima escorre, fazendo cócegas no meu nariz. Eu não quero olhar para ele, não quero ver em seus olhos o que ele deve estar pensando de mim.

— Depois que eu consegui devolver uma caixa com as suas coisas, comecei a receber algumas ligações dele. No começo ele parecia triste, dizendo que se arrependia, que iria mudar. Eu só escutava as desculpas dele, e quando via que não tinha como ele me fazer mudar de ideia, ele começava a me oferecer coisas ridículas, como sexo sem compromisso, falando que sabia que eu gostava.

Só de lembrar dessas ligações já fico enojada. A voz arrastada e maldosa dele enche meus ouvidos e eu quero esmurrar alguma coisa.

— Quando ele começou a fazer muitas ligações, eu troquei o número do meu celular. Mas de algum jeito, ele sempre descobria o novo. Tudo começou a ficar assustador, quando percebi que eu estava sendo seguida, na faculdade, no estágio... eu não falei para os meus irmãos, porque tinha medo da reação deles. Rodrigo tinha acabado de conseguir um ótimo emprego, e eu não queria arriscar que ele sofresse com uma acusação de agressão...

Ficar relembrando dessa situação me faz pensar se eu não estava errada. Se eu não poderia ter escapado das coisas horríveis se eu tivesse falado com meus pais antes. Se eu tivesse deixado que Rodrigo e Miguel lidassem com ele.

Se eu tivesse procurado a polícia antes.

Parece que eu estou sozinha, revivendo esse terror na minha mente, apenas para ter a certeza de que minha vida tinha seu próprio inferno particular, mas a presença de Gustavo teima em me trazer à nova realidade que eu vivo: a de uma pessoa solitária, ainda revivendo o passado.

— Então um dia, eu estava saindo da faculdade, estava tão feliz porque tinha conseguido entregar um trabalho difícil com alguns colegas, quando tive a sensação de que algo estava errado. Um desses meus amigos me ofereceu carona até o estágio, e quando eu estava me preparando para subir na moto dele, ouvi um barulho alto e um grito. Eu me atrapalhei um pouco com o capacete, mas eu conseguia ver o Fernando com um taco de beisebol na mão, e o Alexandre no chão, se protegendo dos golpes dele. Eu tentei gritar para nos ajudarem, mas ninguém queria se aproximar do louco com o taco. Quando finalmente consegui tirar o capacete, o taco veio direto no meu braço direito.

Ainda consigo sentir a dor do taco quebrando meus ossos, o grito que eu dei foi ensurdecedor, o que fez com que as pessoas se afastassem ainda mais. Lembro de alguém ligando para a polícia, mas também me lembro de que eles nunca chegaram a tempo.

A Chance do TempoOnde histórias criam vida. Descubra agora