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Deus deve ter uma noção de conforto muito equivocada, ou eu estou delirando mais do que deveria. Permitir que eu reveja os momentos felizes de uma outra vida, enquanto que nesta eu estou próxima da minha morte me parece mais um castigo do que um alívio à minha alma.

O sonho foi mais longo do que estou acostumada a ter, provavelmente porque fiquei mais tempo desacordada agora. Estou sentada, numa posição muito incômoda, a cabeça jogada para frente – lá se foi a delicadeza de ser colocada sobre um colchão, recebendo bolo na boca como se fosse preciosa.

Agora Fernando está irritado, e consigo sentir isso na maneira como minhas mãos estão presas uma na outra, a língua de gato praticamente cortando a circulação do sangue. Antes de levantar a cabeça, mantenho meus olhos fechados – parte para saborear as palavras de Gustavo em meu sonho, parte para tentar ver se Fernando está por perto.

O incêndio que eu causei deve tê-lo deixado mais do que irritado... eu estraguei os seus planos – quaisquer que fossem eles. Ele me deixou usar o celular, deixou que eu avisasse minha família onde eu estava... ele queria que Gustavo fosse atrás de mim.

Ai meu Deus... Gustavo. Ele sabe sobre Gustavo... sobre sua família... sabe do nosso envolvimento... não posso permitir que Fernando faça nada de mal contra ele. Não por minha causa.

Consigo escutar um barulho não muito longe, como se estivessem revirando por algumas gavetas, incansavelmente. Continuo quieta, na mesma posição, ainda me lembrando da arma que ele apontou para mim dentro do carro, mas uma dor incômoda na minha mão faz com que eu me mexa um pouco, chamando a sua atenção.

— Ah, olha só, a bela adormecida acordou — a voz de Fernando está alta, um pouco descontrolada, e para que ele não me machuque novamente, decido levantar meu rosto e olhar para ele.

Estamos no apartamento onde ele morou quando estávamos juntos. O lugar parece o mesmo, as cadeiras azuis, o sofá bege desbotado encostado numa parede, duro que só por Deus. A televisão de tubo onde nós assistíamos aos seus filmes favoritos ainda continua no mesmo lugar, me dando a impressão de que estou de volta a 2010 – antes que o primeiro pesadelo acontecesse.

Não consigo imaginar por que ele teria me levado a um lugar tão conhecido, tão ligado à sua pessoa, que qualquer um poderia nos descobrir, a qualquer minuto. Meus pais sabem onde é, pois davam carona para ele quando ficávamos até tarde em casa.

Mas só eles sabem... meus irmãos não. Mais ninguém sabe, e meus pais estão um pouco inacessíveis no momento. Isso faz com que eu me sinta menos esperançosa de que alguém nos encontre. Isso quer dizer que eu apenas posso contar comigo mesma.

— Por que esse lugar? Quer que eu reviva aos poucos os piores momentos da minha vida? Já que fizemos isso com você agora há pouco? — preciso mantê-lo falando comigo, sem dar a chance que ele continue mexendo no que agora eu vejo ser a gaveta de facas.

— Sim... devo dizer que o que você fez com aquele lugar foi melhor do que eu poderia ter pensado... mas foi muito perigoso, Melinda. Não queremos que você queime viva, queremos? Ainda tenho muitos planos para você, não vai morrer tão facilmente. Mas você tem que ser boazinha... ah não faça essa casa, eu sei que é difícil para você me obedecer, mas você vai ficar quieta dessa vez.

Ele para de mexer na gaveta e se aproxima de mim, sentando em uma das cadeiras azuis. A arma está na sua mão e um suor frio escorre pelas minhas costas.

Não quero descobrir o que ele é capaz de fazer com aquilo.

— Ótimo, recomeçamos bem. Obrigada por ter feito com que seu namoradinho acredite que você morreu no incêndio. Não vamos ser interrompidos por ele agora.

A Chance do TempoOnde histórias criam vida. Descubra agora