17

314 32 0
                                    

Gustavo está sentado no escuro, escutando o ressonar suave do sono de Melinda deitada em seu colo. Ele a acomodou da melhor maneira que conseguiu, quando ela finalmente dormiu, exausta de tanto chorar.

Ele, no entanto, não conseguiu pregar o olho, e não é por causa da posição incômoda que se colocou para que ela fique confortável – é o mínimo que ela merece, depois de tudo que passou hoje.

Merda, depois de tudo o que ela passou na vida.

O que não permite que ele durma é sua cabeça, que teima em reviver toda a história que Melinda lhe contou – ele tem a certeza de que ela escondeu alguns detalhes, mas Gustavo é inteligente e imagina o tipo de loucura que um homem desse tipo é capaz. Ele não consegue controlar os pensamentos, que criam imagens distorcidas do cara que ele viu correndo pela rua quando virou a esquina de Melinda.

Se não fosse pela preocupação que ele tinha por ela, Gustavo teria corrido atrás dele – e agora que sabe tudo o que ele fez, a ideia de passar o carro por cima dele é insistente em sua cabeça.

A raiva que o corrói por dentro é forte demais para que ele consiga pensar claramente. Nunca sentiu nada parecido antes, sempre racional para que pensasse logicamente em todas as situações em que esteve. Ele não consegue entender como é possível que exista uma pessoa tão horrível no mundo, um homem que seja capaz de capturar e torturar a mulher que diz amar.

E ainda por cima, a mulher mais incrível que ele conheceu na vida. Gustavo entende que qualquer pessoa se sentiria perdida ao perceber que Melinda não o quer mais, mas fazer tudo o que ela contou – e o que ele imagina que ela não contou – está fora de qualquer realidade que ele viveu até este dia.

Gustavo sabe que sempre foi privilegiado em tantos níveis, que só de escutar as coisas horríveis pelas quais ela teve que passar na vida, se sentiu um idiota. Sua vida sempre foi fácil, os caminhos abertos de todas as maneiras pelo dinheiro de sua família, que situações como essas nem ao menos eram conhecidas por ele, até o momento em que abandonou a asa da família para se virar sozinho em São Paulo.

O choque da realidade nua e crua de uma cidade imensa como São Paulo foi tremendo, e por muitas situações corriqueiras ele patinou como uma criança – foi preciso ficar sem luz para entender que a energia não estava inclusa na mensalidade de seu condomínio. Ao ser assaltado pela primeira vez, ele entendeu que a vida não era fácil como ele imaginava.

Nunca se arrependeu de largar os planos que sua família tinha para si – ele deveria estudar administração numa grande e prestigiada faculdade no exterior, talvez, se ele fosse realmente o gênio que seu pai acreditava, uma Ivy League. Mas ele não queria depender de seu pai para ser alguém na vida. Talvez esta tenha sido a melhor coisa que Juliana fez por ele: sua vontade de vencer, em fazer algo que valesse a pena por si só, deu a Gustavo tudo o que ele precisava para dar adeus à tudo que sempre conheceu para se aventurar num mundo completamente novo.

Sua família, ao contrário do que ele imaginou na época, foi muito compreensiva, e o apoiou da única forma que ele queria: sua presença. O dinheiro que era destinado a ele foi colocado integralmente em um fundo de investimento na Suíça, e ele não tinha a menor intenção de usá-lo. Tudo o que possui foi conquistado com seu próprio esforço, desde o apartamento que ele ainda está pagando, até o mestrado que será concluído no próximo semestre. O carro foi o único presente que aceitou de seu pai, e ainda assim foi com um grande peso.

E dessa forma, mesmo caindo de cara no mundo real, no mundo em que pessoas humildes passam horas além do permitido legalmente trabalhando para ganharem uma miséria para comprar comida, no mundo em que apenas o dinheiro de seu pai faria com que a população faminta do Brasil tivesse acesso à uma alimentação decente, ele nunca se imaginou conhecendo alguém que tivesse passado por algo tão grotesco.

A Chance do TempoOnde histórias criam vida. Descubra agora