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A cena me parece um pouco inacreditável.

Estou sentada na minha cozinha, tomando uma xícara de café com Gustavo, depois de tê-lo chamado para me salvar do meu ex psicótico. Depois de ter contado tudo o que eu passei há seis anos com o tal ex. Depois de deixar claro o quão quebrada eu sou.

O café da manhã não é por si só inacreditável – não, essa cena é corriqueira nessa cozinha, onde meus pais fazem questão de comer juntos todas as refeições – mas o fato de Gustavo ainda estar aqui, olhando para mim como se eu não fosse uma mercadoria estragada, está fora da realidade.

Eu chorei desesperadamente em seu colo até não ter mais forças. No estado entre sonolência e atenção que temos naqueles 7 minutos antes de dormir de verdade, me lembro dele passando a mão nos meus cabelos, fazendo carinho nas minhas costas, no meu pescoço, no meu rosto. Quando acreditou que eu estava completamente adormecida, ele me abraçou e fez um malabarismo doido para me colocar deitada no sofá, a cabeça em sua perna.

Foi uma das noites mais tranquilas que eu passei nos últimos anos.

Além da cena surreal da cozinha, outra coisa tem esmagado meu cérebro desde o momento em que o vi, sentado todo esquisito, olhando enquanto eu dormia. A ameaça de ontem foi real, e isso quer dizer que Fernando está cada vez mais ousado. Ele deve saber que meus pais e meus irmãos estão fora.

Isso faz com que a vontade de viver dentro de mim esmague todo o resto.

Eu não seria vítima dele novamente.

Nem que fosse preciso mata-lo, mas ele me deixaria em paz.

Eu tentei, depois que o trauma foi se esfriando lentamente dentro de mim, a viver normalmente. Voltei para a faculdade, comecei a confiar nas pessoas novamente, fiz o possível para manter minha mente ocupada. Consegui o meu emprego atual exatamente um ano após ter sido resgatada, e a princípio eu acreditei ser um sinal de que alguma coisa boa estava vindo.

Eu montei o atendimento terapêutico, tentando trazer conforto aos nerds da empresa, vendo em cada um deles um Fernando em potencial. Para mim, qualquer pessoa podia ser um naquela época. E eu queria evitar que outros homens fizessem coisas horríveis com suas namoradas e esposas – no fundo, eu sabia que não estava tão preocupada com eles, mas sim com elas.

Deve ser por isso que eu me sinto frustrada com o trabalho o tempo todo – não é como se eu estivesse fazendo qualquer diferença.

E garotos? O que eu posso dizer sobre eles? Demorei muito tempo até me permitir a olhar para um. A vergonha que eu sentia do meu corpo e o medo de me expor a este tipo de intimidade de novo era absoluta, e este foi o pior obstáculo que eu tive que superar. Tive que ser forte e determinada a entender que eu continuava sendo uma mulher, uma sobrevivente, mas não menos mulher por isto. Que as cicatrizes que me foram deixadas não tiravam a beleza do meu rosto, ou afetavam o meu caráter.

Tive minha primeira relação sexual com outra pessoa depois de 3 anos que eu fui resgatada. Não foi fácil, eu estava muito nervosa, mas mesmo assim consegui sentir algum prazer. Naquele momento eu tive a certeza de que eu conseguiria continuar minha vida.

Mas nunca permiti que ninguém chegasse tão perto de mim como Gustavo.

Eu tenho medo do que pode acontecer se eu continuar. Mas o olhar dele sobre mim, os sonhos estranhos e reais que tenho de nós nos beijando em meio a lençóis brancos, me jogam no meio desse sentimento que cresce dentro do meu peito.

— Você quer ir no hospital ver seus pais? — a voz dele me tira do transe e eu me assusto com a pergunta tão normal.

Bem, não que ela seja normal, mas perto de tudo que aconteceu nas últimas 24 horas...

A Chance do TempoOnde histórias criam vida. Descubra agora