Capítulo 19

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Estou no refeitório ao lado de Abe, uma menina que acabara de conhecer. Jantamos e conversamos sobre os nossos testes, ela me apresenta sua colega de quarto que se chama Maira. Maira é muito baixinha e seus cabelos são tão curtos quanto os meus. Ela possui um sinal próximo ao nariz e usa óculos com as armações brancas.

O nosso jantar é filé com uma espécie de molho, arroz, vegetais e fatias de queijo com macarrão. A comida aqui em cima é tão diferenciada do Esgoto. Cores mais vivas. Alimentos mais saborosos. A diferença é gritante.

Ao olhar pelo vidro posso ver alguns Filhos desperdiçando comida. Eles jogam em uma grande lixeira tudo o que não conseguiram comer. Levo-os meus olhos até a lixeira e posso ler "Destinado ao Esgoto". Uma ânsia surge. Realmente é isso que acontece? Os restos que não consumidos aqui em cima são destinados para a alimentação do Esgoto. Comida estragada.

— Abe, você acredita que todos os restos de alimentos aqui de cima são destinados para a alimentação lá em baixo dos prisioneiros?

— Que nojo! Isso é muito desumano.

— Em pensar que eu comia isso... – Então deixo o meu prato de lado para evitar um possível vomito.

— Sobre esse Esgoto, como ele é? – Pergunta Abe curiosa.

— Ele é um grande galpão. Durante o dia o calor é insuportável, porém durante a noite o frio chega a nos congelar. É insuportável. Também todos os que vivem lá em baixo cometeram alguma infração, inclusive fui presa por ferir Érika Godsvill.

— Você a feriu? — Abe pergunta, em seguida levanta as sobrancelhas.

— Sim, com uma faca no dia que cheguei aqui.

— Que medo de você! – Ela diz, e começa a rir e a tentar me imitar com uma faca nas mãos. – Você poderia ter cortado a língua dela. – Logo após dizer isso ela imita Érika dizendo: "Em nosso programa veremos uma reportagem sobre alimentação saudável para cães.". Então ela pega novamente a faca fingi cortar sua própria língua.

— Você ficou idêntica a ela. – Comento.

— Eu brincava de imita-la com a minha irmã menor. Divertíamos muito.

— Qual o nome da sua irmã menor?

— Ela chama-se Ana. Diferente de alguns daqui, nós não vivíamos trancadas em casa. Mamãe sempre nos levava para passear. Ela me cobria com muitas roupas, eu ficava irreconhecível.

— Como você veio parar aqui?

— Gravaram as ligações de minha Mãe. Foram os Agentes da Tecnologia. Quando nós percebemos já era tarde demais, no mesmo dia eles estavam em casa para me levar.

— Abe, você morava onde?

— Morava no centro, em Nova Fábrica.

— Então você não veio da periferia?

— Não. Minha Mãe sempre teve uma vida melhor, porém quando eu nasci ela estava cheia de dívidas e a sua loja faliu. Então ela não poderia pagar a multa e resolveu me esconder do Governo.

— Acho lindas as lojas de Nova Fábrica. Tudo é tão caro lá, no meu bairro não havia essas lojas renomadas. Acho que agora não existem nem as mais simples.

— Porque você diz isso?

— Você não ouviu falar do que aconteceu com a periferia?

— Não. O que houve? – Ela mostra-se atenta.

— Eu não sei ao certo, me contaram que aconteceu algo muito grave lá.

— Vale eu assisto bastante a Telectela. Não vi nenhuma noticia disso.

Mas é claro, o Governo nunca iria mostrar o que eles fizeram e continuam fazendo. Apenas o que é transmitido são programas de entretenimento e às vezes lições. Os poucos jornais que estão no ar não noticiam nada, só entretêm. Exibem comerciais a favor do Governo e de alguns produtos dos comerciantes de Nova Fábrica. Alguns programas são extremamente repetitivos. Chegam a repetir o mesmo programa seis vezes ao dia, e o incrível é que as pessoas assistem todas as vezes que passa.

— Abe, você gostaria de assistir o teste comigo em meu quarto? Maira, você pode vir também. – Convido-as.

— Eu aceito. – Responde Abe.

— Eu também. – Responde Maira.

Lembro-me que Maira não se saiu muito bem em seu teste, então não vou me surpreender se ela não passar na espionagem. Seu teste consistiu em injetar líquidos em crianças deficientes. Na terceira criança Maira começou a chorar e muito demorou a injetar.

Faltam alguns minutos para o inicio dos resultados. Então nos levantamos e vamos em direção ao meu quarto.

— Qual o quarto de vocês duas? – Pergunto

— Quarenta e seis. – Maira responde.

— O meu é o quarto trinta e cinco. – Então paramos em frente ao elevador, aperto o botão. Esperamos o elevador abrir-se e entramos.

— Quem é a sua colega de quarto? – Pergunta Abe se olhando nos espelhos do elevador.

— Ela se chamava Vivian.

— O que houve com ela?

— Infelizmente ela se matou. – Respondo. Essa frase muda a feição de Maira e Abe.

— Nossa que terrível. – Lamenta Abe.

— Meus pêsames... – Maira tenta me consolar.

— Tudo bem. No começo fiquei meio abalada, mas agora posso enxergar que o que ela fez foi por bem.

— Ela morreu protegendo alguém? – Pergunta Abe alisando os cabelos com às mãos em frente ao espelhos.

— Sim, ela protegeu uma criança de si mesmo durante o teste.

Então o elevador se abre. Estamos no corredor do meu quarto. As televisões do corredor estão exibindo a poltrona negra.

"Capturados, vocês poderão visualizar o resultado do seu teste em alguns minutos. Após o resultado, vocês poderão ir imediatamente para a sua nova casa. Caso não tenham sido aprovados, por favor, peço que se inscrevam nos testes de amanhã.".

A voz robótica termina seu aviso, e entramos em meu quarto. Ligo a Telectela. Estou sentada em minha própria cama. Abe e Maira estão na outra. As camas encontradas em meu quarto são espaçosas e emitem uma luz azul da armação de vidro quando não há ninguém deitado nela. Alguns Capturados ao fugir, colocavam travesseiros cobertos com os edredons para simular uma pessoa. Essa iluminação especial resolveu este problema.

Estamos concentradas.

Então a Telectela exibe a imagem do Capturado e a palavras "Aprovado" ou "Recusado" são exibidas como legenda para mostrar a situação do jovem. Abe, Aprovada. Vale, Aprovada. Maira, reprovada. A pequena Maira começa a chorar e cobre seu rosto de vergonha.

— Eu não acredito! – Ela lamenta.

Abraçamos Maira e dizemos algumas palavras na tentativa de dar esperança. Amanhã ela fará um novo teste e seu segundo emprego de preferência é a Mídia. Estamos torcendo por ela. A Telectela avisa que precisamos ir em direção a nossa nova casa. A central da Espionagem fica fora da Entidade. Precisamos caminhar pelo grande campo que há lá fora. Começamos a preparar nossas mochilas e Maira diz tristemente que vai voltar para o seu quarto.

— Abe, você pode pegar no banheiro para mim uma toalha que eu esqueci lá?

— Tudo bem.

Abe vai até o banheiro. Estou só. Rapidamente levanto o meu colchão pego a minha arma que está escondida. Vou precisar dela em algum momento? Espero que não. Ela continua embrulhada. Escondo dentro de minha mochila e escuto Abe gritando.

—Não encontrei.

— Tudo bem, eu já encontrei. Desculpe-me!

Abe vem. E saímos em direção à portaria.


FILHOS - [COMPLETA]Onde histórias criam vida. Descubra agora