14. Demônio

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O estrondo da porta batendo fez seus olhos se abrirem devagar e então, fecharem-se com a pontada em sua cabeça. Levou a mão à testa, onde sentiu um band-aid cobrindo um galo. Sua mente estava confusa, lembrava-se de ver pessoas desconhecidas em uma poça de sangue e depois apenas a escuridão.

Sentou-se, sua visão estava embaçada e as vozes desesperadas, distantes. Parecia estar em seu quarto, mas seus pertences não estavam ali. Olhou em volta, onde todos os desconhecidos de antes cercavam Noah, Nico e outro garoto pequeno, todos pareciam assustados.

— Que merda é essa? – sua voz baixa e fraca não foi ouvida por todo tumulto que se formava a sua frente. Levantou-se, as pernas trêmulas, e pigarreou antes de repetir mais alto: – Que merda é essa?!

Eles pararam. O primeiro a se virar foi Lukas, que arqueou as sobrancelhas e revezou o olhar entre a garota e as outras pessoas. O rapaz abriu a boca para dizer algo, mas um baque contra a porta assustou-o.

— Bo, você ainda está com a arma, não é? – a garota de cabeça raspada indagou ao rapaz loiro que espirrara sangue em Kim. Ele tirou uma pistola de dentro do macacão, assentindo com a cabeça.

— Ok, isso é uma arma de verdade – a garota murmurou, então levou as mãos à cintura – Alguém pode me explicar que porra de gangue lunática é essa?

Sem respostas. Já estava irritada com tudo aquilo, como se não bastasse ser jogada em um hospício, agora tinha que lidar com o envolvimento em um crime que sequer entendia.

Outra pancada, mais forte desta vez, fez com que todos recuassem mais.

— Será que alguém pode me dizer o que caralh-

Antes que pudesse terminar seu insulto, a porta escancarou-se. Nico e Noah foram puxados pelo terceiro garoto pequeno; Lukas empurrara a garota de cabeça raspada em cima de uma outra mais alta, fazendo ambas caírem no chão; Bo, o rapaz da poça, deu um passo natural para trás; Kim apenas observou enquanto uma sombra pulava sobre seu corpo.

Não gritou, sequer conseguiu respirar, tudo o que fez foi encarar os múltiplos olhos minúsculos do monstro que se colocava sobre si. Era enorme – especialmente perto de uma garota tão pequena e magra como Young-Woo –, com um focinho que farejava seu rosto e uma dentes grandes o suficiente para arrancar sua cabeça com uma mordida. Nunca fora religiosa, mas imaginou que aquela era a visão perfeita do próprio demônio.

Um tiro no abdome da criatura fez com que ela urrasse de dor. Saltou de cima da garota, caindo com suas patas pesadas no chão de madeira e direcionando-se em direção a Bo, que apontava-lhe a arma. Mais um tiro, passando de raspão no rosto do monstro e levando consigo alguns dos olhos. Dessa vez não apenas rugiu, mas avançou em direção ao rapaz, que tentou esquivar-se, mas a fera fora mais rápida.

— De novo não, filho da mãe – Bo murmurou, tentando livrar-se das garras do monstro.

Dois tiros – um na pata dianteira e outro nas costelas – foram disparados pela garota de cabelos azuis, que apanhara a arma que o loiro havia deixado cair quando a besta o atacou. O monstro virou-se, deixando Bo para trás e partindo em direção a sua nova agressora. Quando estava perto o suficiente, fora derrubada no chão pela indiana de cabelos verdes, que mantinha um canivete suíço sobre sua cabeça e um olhar furioso em seu rosto.

— Seu desgraçado! – gritou, acertando o canivete no rosto da criatura, o sangue respingando em seu rosto.

Todos permaneciam paralisados, boquiabertos, encarando enquanto a garota xingava e esfaqueava a cabeça da besta, mesmo quando já se mostrava morrendo.

— Verme, filho da mãe! Isso parece uma alucinação? – falou, entredentes – Parece real? Seu demônio de merda! Morra, filho da puta!

Lukas puxou a garota de cima da criatura já morta, abraçando-a pelas costas e sussurrando em seu ouvido. A garota segurou suas mãos, sujando-as com o sangue, a respiração ofegante.

Gradativamente, a criatura tornou-se um ser humano, um funcionário com o uniforme verde e o rosto completamente aberto pelas facadas. Ficaram em absoluta quietude, assustados e tensos.

— Alguém vai responder minha pergunta agora? – Kim quebrou o gelo.

— Antes de qualquer coisa... – Lukas indagou, ainda abraçando a garota – Do que você se lembra?

— Aquele cara caiu numa poça enorme e espirrou sangue na minha cara – ela disse, apontando para Bo.

Todos se entreolharam; a garota de cabelos azuis fechou os olhos e suspirou, a outra apertou as mãos do rapaz que a abraçava.

— Bom, é uma história bem complicada...

...

Young-Woo soltou um longo suspiro após ouvir tudo, sobre como Tara – a indiana descontrolada – atirara na cabeça de uma funcionária-monstro; sobre como Liz – a atiradora – empurrara Bo no sangue; sobre como todas as evidências desapareceram; sobre como Ronan – o garoto que protegera Nico e Noah – batera sua cabeça contra a parede.

— É claro que me lembro do sangue – falou, por fim, como se fosse algo estúpido – E sei que não sou louca como vocês.

— Vá à merda – Tara murmurou, sentada no chão, encostada na cama de Nico.

— Então, tudo isso vai desaparecer? – a asiática indagou, ignorando o comentário da descontrolada.

— Desaparecer? – Noah repetiu. Kim não sabia qual era seu problema, mas a forma como fechava os olhos com força enquanto abraçava Ronan indicava o quanto aquilo o incomodava.

— É o que estamos esperando – Lukas disse, ao seu lado, seus lábios formando uma linha tênue e sua testa enrugada.

Voltou o olhar ao corpo no chão, todo sangue que estava no quarto. Olhando daquela forma, era quase impossível imaginar que aquele homem fora um monstro que quase a assassinara e ainda mais impossível de imaginar que tudo desapareceria, como se nada tivesse acontecido.

E então, aconteceu. O corpo definhou, lentamente, como um galho podre de uma árvore, até tornar-se inexistente, restando apenas o maldito sangue. Kim soltou a respiração que sequer percebera estar prendendo. Será que finalmente tinha um motivo para estar ali?

O sinal bateu, ninguém moveu um dedo. E, quando o som estridente cessou, todo o almoço de Kim subira por sua garganta e escapara no chão, misturando-se com o vermelho.

Ronan levantou-se com Noah quase que no mesmo instante, deixando o quarto. Liz e Tara soltaram um grunhido enojado quase em uníssono, enquanto Lukas segurava os cabelos da garota para que vomitasse todo o resto de comida que ainda existia em seu estômago.

Vomitara apenas uma vez por ressaca, quando teve seu primeiro porre. Acostumou-se rápido o suficiente com a sensação da bebida ardente para que não passasse mais mal. Aquela era uma situação diferente, e Kim tinha certeza de que nunca se acostumaria.

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