18. Cores

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Nico nunca foi um bom mentiroso, principalmente depois do acidente que causou seu problema. No dia anterior, no banheiro, dissera a Ronan que estava bem quando na verdade não estava e tudo ficara ainda pior depois de seu surto na noite passada.

Ele não estava bem, e sua inquietude usual estava ainda pior enquanto caminhava sozinho pelos corredores. Noah estava em aula e Ronan havia se oferecido para guiar Martin até sua sala, mas rejeitara – não queria que o colega se preocupasse ainda mais com ele, queria parecer bem.

Mas não conseguia. Suas mãos não paravam de tremer e seus pulmões pareciam não respirar ar o suficiente. Tudo era branco demais ali, cheio e vazio ao mesmo tempo. Não haviam cores, desenhos que o distraíssem, nada que pudesse observar. Queria melhorar, mas todos aqueles medos pioravam sua situação.

Não eram apenas os monstros que o amedrontavam – na verdade, não sabia exatamente o que lhe causava tanto medo, mas sabia que o sentia.

Parou de andar, olhando em volta e buscando por qualquer lugar em que pudesse se esconder um pouco, colocar seus pensamentos caóticos em um pouco de ordem. Seus olhos pararam nas portas do banheiro, as únicas que se diferenciavam das outras. Checou a placa três vezes para garantir que estava mesmo no banheiro masculino antes de entrar, a cabeça baixa, apressado.

Apoiou-se na pia, fitando seus próprios olhos no espelho. Não fazia isso há tempos, sempre temia ver algo que não era, como uma figura distorcida e assustadora. Estava tecnicamente certo, reconhecia a si mesmo, mas estava diferente. Não era o Nico de bochechas rosadas e cabelos brilhantes, com a pele oliva macia e quantidade considerável de massa em seu corpo; o que viu no espelho fora um Nico magro demais, pálido, cujas olheiras profundas circulavam seus olhos agora opacos e os cabelos pareciam emaranhados demais.

E, por um segundo, perguntou-se se aquele Nico saudável um dia existira mesmo. Será que a parte feliz de sua vida não foi apenas uma alucinação? Um sonho bom pelo menos uma vez?

— Nico? – a voz de Lukas despertou-o. O mais velho tocou seu ombro carinhosamente, os olhos verdes preocupados – Você está bem?

— Eu estou bem. Você está bem? – falou.

— Tem certeza? – Lukas ignorou sua pergunta. O sorriso forçado de Nico transformou-se em choro, um choro desesperado e infantil.

— Eu estou com muito medo, muito medo mesmo – soluçou – E eu quero desenhar e jogar video-game, mas não posso fazer nada disso aqui! Eu queria que a mamãe estivesse aqui, mas ela nunca me escuta. Não tem cor em lugar nenhum e eu fico com tanto medo, eu quero melhorar e quero ficar aqui, mas esse lugar não é confortável e esses monstros... – Nico fungou, tentando conter a enxurrada de palavras que fugiam pela sua boca – Eu quero ficar bem de novo, eu não quero mais isso!

Era a primeira vez que Lukas não sabia como reagir e o garoto não o culpava, ninguém sabia como lidar com tudo o que falava, mas não conseguia conter. Todas as ideias, sentimentos, memórias giravam como um redemoinho em sua mente, sempre tentando escapar e afogar qualquer um que estivesse ouvindo. Sabia que era irritante, que esse era o motivo pelo qual Noah nunca o respondia com nada além de movimentos com a cabeça: não o entendia.

Ninguém nunca o entendia.

— Tudo bem, eu tive uma ideia – o loiro falou, finalmente, segurando os ombros trêmulos do mais novo. Martin levantou o olhar inchado e lacrimoso, esperando pela explicação de Lukas – O que acha de pular essa aula e ir até o jardim?

— Você pularia a aula por mim, Lukas? Faria isso mesmo? – a voz de Nico era esperançosa agora. O mais velho esbanjou um sorriso e bagunçou os cachos do menor.

— Eu não gosto de jogos de tabuleiro, de qualquer forma.

...

Martin costumava temer outros garotos, especialmente mais velhos como Lukas. Tinha medo de que fizessem algo ruim com ele, algo que se assemelhasse com todas as experiências ruins que tivera em sua vida. No entanto, tinha total confiança em McKenzie, que o tratara bem desde o começo.

Mesmo antes de adoecer, Nico nunca tivera muitos amigos – era sempre ele, seus cadernos e seu gameboy – e tampouco um homem mais velho em que pudesse se espelhar, alguém para lhe ensinar qualquer coisa. Talvez esse fosse o motivo de sua tendência psicótica, o fato de que crescera sozinho, subindo em árvores e fantasiando mundos fictícios.

E era por isso que gostava de Lukas, o rapaz era a imagem mais velha que nunca tivera, era alguém que cuidava e se importava, que sempre dava a atenção que precisava.

— Por que está aqui, Lukas? – questionou, enquanto caminhavam furtivamente até o jardim dos fundos, que não era utilizado nas aulas de botânica – Você é tão bonzinho e não parece doente, não parece mesmo.

— Vim para cá por causa de drogas, mas me recuperei bem rápido – o outro explicou, olhando em volta para checar se a costa estava limpa – Acabei ficando mesmo depois de tirar alta.

— Por quê? Você não tem casa? – Nico perguntou, preocupado – Isso não te deixa triste, não é? Pode falar sobre isso, certo?

Lukas sorriu e balançou a cabeça, parando ao pé de uma árvore e encostando-se em seu tronco.

— Tudo bem, posso falar sobre isso – disse – Minha família deve ter desistido de mim, perdemos o contato depois de algumas semanas minhas por aqui. Acho que decepcionei eles... – deu de ombros.

— Ah, eu também decepcionei a mamãe – Martin falou, imitando o gesto do rapaz – Eu gosto muito dela, bastante, mas ela nunca... – pigarreou, reprimindo todas as palavras que pudessem trazer as piores lembranças – Eu fiz algo muito ruim, muito errado, ela chorou por muito tempo e ficou muito triste comigo. Por isso estou aqui, ela me fez prometer que melhoraria por ela.

— O que você fez? – o mais velho perguntou, seu rosto agora mostrava interesse na conversa.

Nico deu um sorriso sem graça, dando de ombros outra vez. Não queria falar, sentia vergonha do que fizera, do acidente que lhe deixara doente. Sempre que relembrava o acontecimento, pensava o quão estúpido fora; ele causara o próprio problema. Por outro lado, sentiu-se na obrigação de contar a Lukas, depois do loiro tê-lo contado algo como aquilo. Suspirou, desviando o olhar para uma abelha que voava sobre um arbusto.

— Eu usei um monte de coisas ruins e fui parar no hospital – confessou, finalmente – Fiquei dormindo por um tempo e aí, quando acordei, tudo isso já estava na minha cabeça.

— Por que usou essas coisas? – McKenzie mudou o peso de sua perna – Por diversão ou...

— Eu só não queria mais... – não terminou a frase e Lukas não o pressionou para fazê-lo. Talvez tivesse entendido, pela forma como Nico abraçou o próprio corpo, como se tentasse esconder-se.

O mais velho bagunçou seus cachos novamente, então apontou para algo atrás do menor, com um sorriso empolgado no rosto.

— Acabei de ver um esquilo naquela árvore! – exclamou.

Martin sentiu a empolgação surgir em seu corpo, virou-se pronto para procurar pelo roedor. Os dois ficaram ali por cerca de uma hora, procurando pelo esquilo, gargalhando de tal forma que Nico nunca fizera.

E, naquela tarde, decidiu que queria ser como Lukas, cuidar de Noah, principalmente. Queria crescer e ser o irmão mais velho que McKenzie estava sendo para ele.

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