Capítulo XIV -

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Contemplar a lua refletida na superfície calma e límpida das águas do mar era só o que me restara a fazer. A reação de Eirie não saía da minha cabeça. Sua feição era assustadora. Sua pele se assemelhava à brasas. Lembro de ter pensando que ele estava se tornando uma chama viva. E depois, como se nada tivesse acontecido, ele estava sentado,  calmo e novamente distante também observando o horizonte em outro ponto da colina. Permaneci em meu leito improvisado fingindo dormir quando na verdade remoía um sentimento que nem eu mesma compreendia muito bem. Aquilo era pena? Disse para mim mesma que precisava esquecer e começar a me preocupar com problemas maiores. Precisava colocar a cabeça em ordem. Precisava descobrir o que cada Regência realmente pretendia fazer. Precisava saber se os Regentes me enxergavam como um empecilho para suas conquistas gloriosas ou se me queriam para utilizar como instrumento para suas finalidades. De uma coisa eu sabia, tudo isso era uma conspiração gananciosa e desenfreada pela tão sonhada supremacia da raça Guer, talvez até para que o vencedor se provasse Senhor Supremo de sua própria raça.

Regentes contra Regentes dominando seus subordinados para lutarem pela destruição dos seus semelhantes. Imagine o que não poderiam fazer uma raça diferente da sua? Meios diferentes para se obter o mesmo resultado: se libertaram do Limite de Una e subjugar os Não-Guers. Guerras começam por motivos egoístas e acabam envolvendo e arrastando pessoas inocentes para o cerco, não seria esta diferente. Embora eu duvidasse que o povo saísse ganhando alguma coisa com a vitória de seus Regentes, as massas se inflamavam com o discurso e fariam qualquer coisa para estarem do lado vencedor. De um lado, o Regente do Fogo sabia que sem mim não poderia desfazer a imposição do Limite e assim, não haveria a tão planejada e esperada vingança. Do outro, o Regente da Terra e seus soldados da Ordem dos Guardiões de Metal, com certeza compreendiam que o sucesso da Primeira Regência era seu fracasso e que precisavam de mim – tal qual precisavam de Eirie – para obter as matrizes e conseguirem alcançar seu ideal de imortalidade. Mas e os outros? Eu não sabia qual o papel das outras duas Regências e o que poderiam querer de mim.  Sendo filha de Não-Guers e tendo vivido toda a minha vida do outro lado do limite, ponderei que talvez pensassem que havia surgido para me unir aos Não-Guers em vista de derrubá-los para usurpar seus tronos. 

  Mas naquele momento, eu precisava convencer Eirie de que se juntar a minha luta era o certo e poderia salvar nossas vidas – já que ele só pensava em si mesmo, talvez essa fosse uma estratégia melhor. O problema é que não encontrava uma abertura para fazê-lo. Nós não funcionávamos como uma equipe – como, tecnicamente era pra ser – muito pelo contrário, nós nos repelíamos. Me culpei por criar expectativas de ter um propósito de vida quando escutei Maya e Peter dizerem que eu tinha uma missão dada pelas Divindades. Desde então só havia me metido em problemas e nada de bom descobrira. As coisas que descobri, mesmo só o que ele me deixava saber por alto, já me amedrontavam o suficiente para me fazer querer desistir dos meus poderes. Como conseguiram fazer tantas pessoas acreditarem em sua suposta superioridade através coerção e cultura do medo? Como insuflaram tanto essa chama de ódio? O que disseram para todos os Guers que os convenceu de que somos todos inimigos? Porque então deveriam me caçar se não havia feito nada de errado?

Senti um pouco de frio e rolei na direção contrária onde vi Phil dormir com ar sereno e uma áurea de neve branquinha se formando ao seu redor. Deduzi que a sensação fora causada por ele, já que o garoto poderia transformar a água em estado líquido para o estado sólido, só não entendia como poderia fazer isso mesmo dormindo. Sorri um pouco por perceber que não era apenas eu quem não conseguia manter neutros os poderes vinte e quatro horas por dia e me virei de costas novamente. Reparei na ausência de Eirie que não se encontrava mais no seu posto de vigia. Levantei rapidamente e dei mais uma olhada em volta, em seguida tentando acordar Philip. Algo estava diferente nele. Me aproximei bem de seu corpo deitado sob a grama para constatar que estava endurecido, marmorizado. Deitei minha cabeça com o ouvido em seu peito para ouvir seu coração e nada. Afastei o pensamento ruim e atribuí aquilo ao meu afobamento. Conferi sua respiração e percebi, desconsolada, que ele também não respirava. O desespero tomou conta de tudo em mim e comecei a sacudi-lo, desejando trazê-lo de volta. Chamei por Eirie na esperança de que ele soubesse reanimá-lo. E naquele momento – após dias sem escutá-la – a voz retornou e com mais força.

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