Capítulo XXIII -

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Não havia imaginado que a consciência dos meus atos me atacasse com tanta rapidez. Comecei a me sentir incomodada comigo mesma e suja pela sensação de prazer e da adrenalina que se apossou de mim por estar cometendo um crime. Deixei de lado aquele vestido, os coturnos de segunda mão já gastos de tanto os usar, e a capa azul esverdeada que me protegia muito bem do frio que fazia lá fora.

Joguei tudo de qualquer forma pelo quarto, desesperada por me livrar daquele sentimento de impureza que eu julgava estar impregnado nas vestimentas – ledo engano – e me encaminhei para o banho. O chuveiro não aquecia corretamente, então tive de tentar fazer por mim mesma. Flashes dos últimos acontecimentos bombardeavam minha memória, punindo meu senso de moralidade, mas eram aplacados por vislumbres dos momentos que passei com Eirie na Greenland – o grande mercado onde passamos o resto do tempo depois dos furtos. Quando foi que Eirie passou a ter tanto espaço na minha mente?

— Ai! — Exclamei quando senti a alta temperatura da água que eu nem havia percebido ter esquentado tanto. Assoprei e só então constatei que não havia levado sequer uma toalha para o banheiro. — Ótimo, agora mais essa!

Reclamei em voz alta, mesmo só estando eu ali. Voltei e peguei uma blusa comum e uma calça de um tecido muito confortável, quente e menos pesado. Depois de tanto tempo utilizando as vestimentas lanovienses que me incomodavam bastante e tiravam qualquer liberdade de movimento, eu finalmente tinha um tempo para me sentir eu mesma novamente.

Saí andando pelo corredor mal iluminado em direção ao quarto de Eirie – por que definitivamente eu não ficaria sem tomar meu banho. Meus passos provocavam ruídos na madeira antiga do assoalho e este era o único som que eu podia captar. Achei aquilo estranho mas continuei. Quando cheguei na porta, que estava entreaberta e a empurrei levemente.

O garoto estava sentado no chão encostado na parede oposta. A cabeça baixa, o corpo meio caído e rosto pálido brilhando com gotas de suor que se destacavam à uma meia luz que a própria chama criada por ele produzia. À medida em que adentrei o cômodo com poucos móveis dispostos em seu interior e apertei o interruptor, notei que Eirie se sobressaltou e arregalou os olhos para em seguida rapidamente consertar a postura e respirar aliviado ao me ver ali. Reparei também que em sua mão haviam panos escurecidos por... o que era aquilo? Sangue? Tão logo constatei, corri até ele me ajoelhando ao seu lado.

— Mas... mas o que aconteceu?

Ele deu uma risada curta e forçada seguida de uma tosse, como se zombasse de si mesmo para esquecer a dor que estava sentindo.

— Bem, eu devo ter esquecido de tirar as lâminas antes de sair rolando em cima dos prédios. Nada demais, só alguns cortes.

— Deixa eu ver isso.

— Não precisa. Eu dou conta sozinho. — Ele segurou minha mão, impedindo que eu completasse o movimento de tocar sua pele. — Você queria alguma coisa?

— Você teria toalhas sobrando?

— Pode procurar no buraco negro. — Olhei para ele com expressão interrogativa. — Quero dizer, na bolsa mágica.

Procurei entre todos os demais itens que havíamos adquirido na Greenland e encontrei as toalhas novas, extremamente brancas e macias. Já estava saindo do quarto e encostando a porta quando uma sensação estranha me abateu. Algo estava realmente errado. 

— Eirie, eu tenho a impressão que... — Comecei a falar, mas parei depois de girar os calcanhares e encontrar expostos os ferimentos que antes ele havia tentado esconder de mim. — Nada demais, não é?

Ele sorria amarelo. Tomei o pano de sua mão e dei uma olhada. Não era nada muito grave, eram apenas alguns cortes pouco ou medianamente profundos.

Legado e AscensãoOnde histórias criam vida. Descubra agora