Prólogo

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  Eu não pude frequentar uma escola. Eu pertencia a uma época em que instituições coletivas como as de ensino eram algo a ser evitado. Tudo o que aprendi me foi transmitido por professores particulares com os quais eu nem tinha contato direto e por minha tutora. Claro que, consequentemente, não tive contato com muitas crianças durante a minha infância. Era difícil fazer amizades num cenário em que a questão individual era mais importante do que a coletiva. Era difícil confiar uns nos outros, mas eu me apegava na crença de que era possível – e necessário – confiarmos. Afinal me parecia ter sido exatamente a desconfiança, a ganância e a intolerância os motivos pelos quais o Mundo Antigo ruiu.

Lembro que eu costumava carregar comigo uma espécie de diário que achei esquecido no escritório do meu pai. Na esperança de que aquele objeto tivesse pertencido a minha mãe, eu praticamente decorei aquelas linhas tantas vezes as li. As palavras escritas naquelas páginas pareciam uma carta de motivação. Elas tinham um forte e impetuoso espírito revolucionário e desejo de mudança que eu não entendia muito bem até precisar vivenciar. Mesmo assim, não contei à ninguém sobre aquele achado. Até mesmo porque, parte do que aprendi sobre o Mundo Antigo continha furos e inconsistências e que à medida em que eu crescia, comecei a notar e duvidar da veracidade. Por mais que eu tentasse descobrir e conectar os fatos, não haviam registros precisos a respeito de períodos como os da Terceira e Quarta Guerra Mundial e da Supressão. Eu me questionava se seria realmente possível que ninguém mais houvesse percebido isso, e se descobriram, por que não incluíram as partes faltantes em documentos oficiais e nos planos de ensino?

Haviam sim registros de que no ano de 2032, teve início a Terceira Guerra Mundial. E que em consequência da potência das armas químicas, nucleares e biológicas utilizadas durante os mais de sete anos em que ela durou o planeta ficou extremamente devastado. Por efeito de tanta exploração, destruição e do uso de radiação contínua e descuidada grande parte de alguns continentes sofreram impactos de constantes terremotos e tsunamis. As massas de terra que não submergiram sofreram uma unificação remetendo ao formato original que conhecíamos como pangeia. A este movimento incomum das placas tectônicas os cientistas denominaram "Grande Lizma".

  Dentre outros efeitos já esperados estavam o desequilíbrio das condições climáticas no planeta e a escassez dos recursos minerais que foram se tornando cada vez mais insuficientes para suprir a população. Estudos realizados no solo em várias regiões do recém formado Grande Lizma apontaram que ele estava contaminado inviabilizando a produção de alimentos e, em consequência, ocorriam conflitos em todos os cantos pelo que havia sido estocado. A situação era tão desesperadora ao ponto das pessoas matarem por comida e água. Para amenizar a situação cada vez mais complicada e tentar conter novos conflitos, nasceu um modelo emergencial de governo que visava mostrar união dos povos remanescentes frente a situação de calamidade mundial: a Cúpula dos Líderes. Tal governo instaurou um conjunto de medidas a serem tomadas, com algumas até mesmo gerando ainda mais insatisfação da população.

  E apesar de precisarem de nascituros para garantir o futuro da espécie humana, não haviam recursos suficientes para todos, desse modo, se tornou muito comum que os casais optassem por não ter filhos ou que tivessem apenas um – como o indicado pela Cúpula dos Líderes. A comida, além de racionada, passou a ser produzida em laboratórios com sabores e aromas artificiais – as famílias mais ricas poderiam até adquirir um "sintético-sofisticado", que não tinha um gosto tão ruim. A água ainda era um bem muito complicado e com um valor superfaturado nas linhas de produção em larga escala, então muita gente acabou morrendo de sede em todos os anos após o fenômeno de remodelação global. O planeta passou por um nível destrutivo tão alto, que especialistas calcularam milênios para que ele se recuperasse ou mesmo que não houvesse mais espécie humana para presenciar sua recuperação.

Em 2044, mesmo após grande parte da população mundial tendo sido dizimada na guerra ou com as consequências dela e com a parte restante sofrendo com a fome e a escassez de água, estourou um novo conflito mundial: A Supressão. Mas, diferente do anterior, esse era motivado por intolerância e incitado justamente pelo governo cupular. Na época, veiculavam-se progressões que mostravam que a população restante e vindouros poderiam desenvolver anomalias incluindo: deficiências físicas e intelectuais, doenças variadas e baixa imunidade e, o que mais chocou a população foi a informação de que cerca de um terço começaria a apresentar habilidades incomuns. Mesmo sem saber exatamente do que se tratava, as divisões e a perseguição foram se tornando crescentes. Por apresentarem um risco nunca visto anteriormente, já de início, todos que manifestavam qualquer tipo de anomalias eram detidos por organizações privadas e governamentais, com o "intuito" de se tornarem material de estudo para descobrir o que havia mudado na estrutura genética dos indivíduos e o que poderia ser feito para reverter ou estabilizar. O pânico se instalou e depois o oportunismo.

A população que parecia ter se acostumado a sobreviver com o mínimo e sofria para se adaptar às novas condições, foi impactada por outra onda de terror. E nem mesmo a fresca lembrança da Guerra foi impedimento para o conflito. Justamente sobre esse período da história tudo que se podia encontrar era história oral ou transmissões oficiais dos meios de comunicação autorizados pelo Departamento Cupular de Notícias, explicando que o conflito se dera entre grupos extremistas de unidades-nações da fronteira norte que não aceitaram se integrar ao Grande Lizma e aparentemente se valiam de uma arma secreta capaz de depor o poder vigente, se declarando, portanto, contra a Cúpula dos Líderes. Os extremistas conseguiram, ao longo de sua campanha, conquistar como aliadas até mesmo unidades-nações na época já integradas e acabou causando problemas e dificuldades. Mas a Cúpula saiu vitoriosa e conseguiu completar a integração de todos os territórios em mais de quinze anos de cisão.

  Os estudos divulgados tranquilizavam a todos dizendo que a "nova raça" – como os Rebeldes Extremistas a categorizaram – estava totalmente extinta, não oferecendo qualquer tipo de risco para os sobreviventes do Grande Lizma. Os estudos mais atuais consideraram aqueles acontecimentos uma mera pandemia de mutação genética suprimida através de tratamentos desenvolvidos por pesquisadores do Grande Lizma especialmente para as vítimas da radiação que desenvolveram anomalias mais graves. E embora eu nunca houvesse conhecido ou tido notícias de alguém com anomalias que não fossem as físicas, intelectuais ou relacionadas à questões de saúde, o diário fazia menções de algo que parecia muito mais extraordinário e que não seria tão facilmente destruído. Algo que eu nunca saberia se não houvesse expandido meu universo e me permitido olhar além.

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