Capítulo XXI -

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Os pesadelos pareciam me perseguir. Embora estivessem diferentes, ainda conseguiam me tirar o sono. Estavam mais parecidos com fragmentos de lembranças. A mulher misteriosa estava lá, como sempre, mas parecia mais jovem e os lugares por onde ela passava eram completamente distintos dos que eu estava acostumada a ver. Embora parecesse Una Royal, por não estar destruída ou contaminada com radiação como várias áreas no Grande Lizma, eu sabia que não era. Era mais como se aquela lembrança fosse de um passado distante e não de atualmente.

As pessoas ao redor se vestiam diferente, o céu estava azul com poucas nuvens, tanto que era possível ver o Sol radiante lá em cima e todos andavam nas ruas com pressa, alguns falando sozinhos como se estivessem com alguém ao lado e outros com os olhos fixos em um bloco de laterais finas e formato retangular nas mãos deslizando os dedos para cima, para baixo e para os lados.

De repente, um rapaz distraído – do grupo dos que falavam sozinhos, trombou com ela e trocaram umas palavras no mesmo idioma esquisito que Eirie falava de vez em quando, era como se estivessem brigando mas eles sorriam e até se ajudaram a levantar. Eles pareceram ter compreendido que iam para o mesmo lugar, a julgar por suas expressões e por terem se dirigido para o prédio enorme que a moça misteriosa tanto olhava antes de esbarrar e derrubar umas estranhas coisas brancas e pequenas que o rapaz carregava no ouvido.

Não havia nada naquele sonho, mesmo assim, não consegui voltar a dormir. Revirei no colchão duro até ajustar uma posição mais confortável e poder mirar a triste visão do teto cinza e sem vida da ratoeira – apelido carinhoso e autodepreciativo com o qual Eirie e eu nos referíamos ao abrigo subterrâneo. Acredito que para a população de Lanóvia era isso o que representávamos, a escória.

Por meio dos estudos na Biblioteca eu pude entender que havia um grande preconceito da Ordem para com os Guers e que chegavam a repudiar o hibridismo entre essas raças, punindo quem o praticava com o banimento. Também foi assim que entendi que o povo de Lanóvia não era humano – diferente de nós Guers que somos humanos geneticamente modificados – e sim uma espécie chamada Rhunae. Acredito que Alexandra não quis me deixar saber mais do que isso para evitar o desconforto que poderia causar, afinal de contas é o povo dela e eles é que têm sua lealdade.

Na verdade, independentemente de saber mais ou não, todos os dias ali eu sentia que não era bem vinda e sendo uma fugitiva procurada – mesmo sem ter cometido algum crime, eu acho – que pertencia a um povo de que os Lanovienses odiavam por seja lá fosse o motivo, eu me sentia ameaçada e o abrigo passava cada vez mais a me soar sufocante e a fazer jus ao nome que lhe demos.

Me empertiguei com esse pensamento e comecei a me remexer. Todas as noites em que acordava assustada com algum pesadelo o mesmo processo ocorria, mas principalmente depois da conexão matricial que estabelecemos, eu tinha um receio diferente da nossa proximidade. Antes era por medo dele e agora isso me lembrava de como era igualmente agoniante estar em um de seus pesadelos. Infelizmente não havia muito espaço ali para onde eu pudesse levar meu colchão e dormir longe dele. Mesmo assim, o meu verdadeiro medo naquele momento era descobrir que não só eu tive acesso à mente dele como ele também teve acesso à minha. Por conta disso, comecei a evitar o contato físico e até o contato visual com ele o que me fazia sentir uma estúpida. Não seria mais fácil ter uma conversa franca com ele sobre o que aconteceu? Mas é óbvio que não. É do Eirie que estamos falando...

  A única coisa que me consolava era o fato de que ele não poderia saber o que se passava em minha mente se não nos tocassemos – ou ao menos eu achava que funcionava assim – e por seu maior desejo ser ficar o mais distante possível de mim, ele nem se daria ao trabalho de tentar. Afinal de contas, sei que ele se sentiu ameaçado. Ter alguém invadindo seus pensamentos, sonhos e privacidade deve ser aterrorizante e eu não tiro a razão dele, mesmo não tendo feito de propósito.

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