Capítulo sem título 40

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                                  Daniel

Deitado na minha cama e olhando para o teto, vejo as estrelas brilhantes que pedi que meu pai colasse quando ainda era criança. Eu nunca quis tira-las de lá. O escuro sempre foi aterrorizante, porém aquelas estrelas sempre me confortavam. Algumas lágrimas escapam dos cantos dos meus olhos. Eu não queria estar triste. Eu juro. Mas eu estou. Sinto um enorme vazio. Melinda merecia mais. Ela tinha tanto potencial. Eu conheci uma Melinda que ninguém mais conheceu. Um privilégio enorme, sem dúvidas. Ela me fez perceber que somos bem mais do que os olhos podem ver. Não sei se vou me recuperar algum dia do efeito dela na minha vida. Mas pensando bem, eu nem quero. Ela estará comigo sempre, em minhas lembranças. Melinda foi meu primeiro amor. E foi incrível. Sua morte não será em vão.

-Oi, filho!

Minha mãe entra no quarto cuidadosamente me avaliando. Posso sentir a preocupação em seus olhos. Não tenho comido quase nada há três dias, desde que Melinda se foi. Faço tudo automaticamente e até eu tenho me estranhado ultimamente. Perdi totalmente a vontade de fazer qualquer coisa que seja. E não só meus pais estão preocupados comigo, mas DJ e Mike também. Eu acho que o que torna tudo pior para eles é não saber o motivo.

-O Jantar está servido! Eu espero que desça... Eu não quero ter de usar minha autoridade de mãe.

Ela diz e me da uma leve piscadela.

-Eu já desço Mãe.

Digo sem vontade. Até pronunciar palavras tem sido raro. Ouvi meu pai e minha mãe discutindo sobre meu caso e a palavra que eles mais usavam era 'depressão'. Mas eles não sabem que na verdade eu estou vivendo o luto. Eles não sabem o quão próximos eu e Melinda nos tornamos. Com certeza eles já devem saber de sua morte. O pai de Melinda é muito conhecido, e vários jornais já devem ter espalhado a noticia da fatídica morte de uma adolescente que teria um futuro brilhante assim como seu pai e com um casamento já certo com o herdeiro dos Gourlat. Mas eles realmente não a conheciam como eu. Não sabiam o quanto ela poderia ser ao mesmo tempo a pessoa mais forte e então a pessoa mais frágil. Não sabiam que ela usava a ironia como sua arma de defesa. E nem que ela, às vezes, também era insegura. Ninguém conheceria a mesma Melinda que eu.

Minha mãe me olha com uma expressão preocupada, ela parece estar decidindo se acredita ou não que irei descer. E então, depois de um tempo me observando, suspirando ela deixa o quarto. Decido descer. Não seria nada legal deixar meus pais mais preocupados. Durante todo o jantar eles passam calados, me observando com o canto do olho, o que não é natural deles. Parecem estar esperando o momento em que vou surtar ou sei lá o que. E assim entro em uma rotina de responder meus pais apenas com sim ou não, ou então com frases curtas. Passo o dia no meu quarto. Ouvindo músicas tristes e melancólicas que expressam exatamente o que eu sinto. Desço somente para comer, e sempre como rápido e volto novamente para meu quarto. Na tentativa de me animar, minha mãe convida DJ para jantar conosco. Mas eu não quero mesmo interagir com ninguém, nem mesmo com meu melhor amigo, e noto a decepção dele ao ir embora. Mike também aparece, porém ele só me garante que está dando conta de tudo no estúdio e que a hora que eu me sentir melhor meu emprego estará esperando, e logo vai embora. Quando já faz uma semana que estou nesse estado ouço minha mãe gritando do corredor e não consigo ficar avesso a isso, já que muito dificilmente alguém consegue fazer minha mãe ficar tão brava. E então perplexo percebo que ela está discutindo com meu pai.

-Eu não posso ficar calma! Ele precisa da nossa ajuda! Ele não come, não vai ao colégio e ele não é mesmo garoto de sempre.

Minha mãe fala quase gritando e ela parece um pouco histérica.

-Querida, nós iremos dar um jeito nisso! Talvez seja apenas uma fase. Vamos dar um tempo para o Daniel.

Meu pai fala pacientemente tentando acalmá-la.

-Tempo?! De quanto tempo você acha que nosso filho precisa? O tempo suficiente para ele se jogar de uma ponte, talvez?!

Minha mãe diz quase chorando.

-Nós nunca deixaríamos isso acontecer!

Meu pai diz e eu espio os dois pela fresta da porta do meu quarto. Ele tenta abraçar minha mãe e ela se esquiva. E essa reação é completamente nova.

-Eu não quero saber! Ele precisa de ajuda e eu vou chamar um psiquiatra para analisá-lo.

Ela diz séria cruzando os braços e meu pai se afasta.

-Tudo bem, querida, se é isso que você quer.

Meu pai diz e parece cansado para discutir.

Minha mãe caminha até seu quarto e fecha a porta. Meu pai com cara de desanimado sai de casa. Eu sento na minha cama e tento me lembrar de quantas vezes já ouvi alguma briga dos meus pais. Nunca. Nunca eles realmente brigaram dessa forma. Apenas discussões bobas que logo eram resolvidas com um abraço e um beijo. E agora eles estão brigando e por minha causa. Lembro do que aconteceu com os pais da Melinda. Não posso deixar que isso aconteça aos meus pais. Eu não poderia viver com a dor de ter sido o causador da separação deles. Resolvo que é hora de reagir. Pelo menos tentar voltar ao normal. Sei que não será fácil e que não será rápido, mas preciso tentar por eles. Sem contar que Melinda não gostaria de me ver nesta situação e provavelmente ela diria que eu sou um bocó. Vou até o quarto dos meus pais. Minha mãe está sentada na sua poltrona preferida e lendo um livro, ela sempre diz que ler a acalma. Eu entro devagar no quarto e ela demora um pouco para perceber minha presença e quando percebe leva um pequeno susto, mas ao constatar que sou apenas eu, ela sorri.

-Filho! Que susto você me deu! Pensei que estivesse no seu quarto.

Ela diz largando o livro sobre o criado mudo.

-Eu resolvi que já estava na hora de voltar ao normal.

Digo sério e ela me olha avaliando o que acabei de lhe dizer. Ela parece querer me dizer algo, mas então muda de idéia e sorri.

-Tudo bem.

Me diz e eu tento sorrir de volta, mas o que sai é apenas uma careta estranha.

Volto para meu quarto para ouvir um pouco mais das minhas músicas que combinam com meu humor.

No outro dia desço para o café e tomo apenas um copo de suco. Meus pais parecem estar com um humor melhor hoje. E eu gostei de ver seus sorrisos cúmplices voltarem aos seus rostos.

No colégio logo que chego vejo DJ de longe. Me enfio no meio de um grupo grande e passo por ele sem ser percebido. Eu sei que devo desculpas ao meu amigo. Mas eu só não estou pronto ainda. Não quero saber como foi deprimente o velório da Melinda ou como o André chorou desconsolado sobre seu tumulo. Paro de repente ao avistar o Igor conversando com alguns garotos. Olhando ele rindo e interagindo noto que seu sorriso me lembra bastante o de Melinda. Volto do meu pequeno transe e só então vejo que ele também percebeu minha presença. Ele balança o braço fazendo um sinal na minha direção para que o espere. Ele está sorrindo? Será que ele não sentiu tanto quanto eu a morte da irmã? Eu olho para os lados procurando uma rota de fuga e volto novamente a me misturar a um grupo grande de pessoas passando e quando chego próximo aos banheiros me enfio dentro de um privado. Eu não consigo. Não estou preparado para isso. Ele me faz lembrar tanto dela. Pego a pulseira que está no meu bolso e a seguro com força. Algumas lágrimas rolam de meus olhos e eu as enxugo na manga da camisa. Lembro-me do motivo por estar aqui. Meus pais. Preciso fazer isso por eles. E então toca o sinal de começo das aulas. Eu saio do privativo e lavo meu rosto. Vou em direção a minha sala. Entro de cabeça baixa e me sento na ultima mesa perto da porta. Continuo de cabeça baixa tentando fingir que não existo. Quando eu a ouço. Será que estou ficando louco? E então ela fala novamente. Eu olho para frente da sala e um cabelo ruivo se agita e logo depois um rosto se vira para o lado sorrindo para alguém. Meu coração quase para. É ela. Melinda.

Uma Patricinha em minha vidaOnde histórias criam vida. Descubra agora