CASSIE
Eu já estava mais do que cansada de fugir. Parecia que tudo no mundo conspirava para que no final eu acabasse fugindo.
Dessa vez não foi diferente. É claro que não. As razões eram apenas diferentes das demais. Dessa vez as coisas simplesmente haviam saído do controle, fora dos limites. Ninguém em seu juízo perfeito agüentaria.
Para a minha felicidade, uma de minhas melhores amigas - se não a única -, Clarisse, estava junto comigo. Quer dizer, ela não estava fugindo, lógico, apenas acompanhando porque era teimosa demais para ficar em casa.
- Vai chover - avisei, olhando para o céu nublado de Miami, logo acima de mim. Já dava para ver os relâmpagos, e pingos começavam a cair. - Isso é realmente estranho.
- Cass, você está certa - Clarisse concordou. - Vai chover. Não podemos ficar aqui. Tem certeza de que não quer ficar lá em casa? Tem espaço de sobra, e você sabe que meu pai te adora.
- Ok - cedi, Clarisse ficara repetindo e repetindo aquilo há uma hora. - Apenas porque tenho baixa tolerância a ficar encharcada.
- É estranho chover aqui, não acha?
- Não. Nada mais me impressiona.
- É claro. Mas se nevar, vou começar a me preocupar de verdade.
- Não vai nevar. E se nevasse seria bom. Me faria esquecer que é Miami.
- Vem, vamos indo. Minha casa não está muito longe.
Nós duas começaram a correr, porque a chuva ficava cada vez mais forte.
Clarisse era irritantemente maior do que eu - não que eu fosse alta. Clarisse parecia ser mais velha do que realmente era. Tinha quatorze anos e com cara de dezesseis. Os cabelos castanhos ondulados não eram muito grandes, passavam um palmo dos ombros. Os olhos eram uma cor perto de avelã, talvez mais claros. Ela tinha lábios carnudos e sobrancelhas delicadas. Apesar de ter aparência bem desenvolvida, ela era como uma criança por dentro - e agia como uma.
***
- Me desculpe incomodar, Sr. Martinez - desculpei-me.
- Cassie, já disse, pode me chamar de Julio - ele falou docemente
Eu já estava na casa de Clarisse, onde ela morava com o pai, Julio Martinez. Ele era um cara alto e magrelo, com o cabelo castanho espetado em ângulos estranhos. Ele era arquiteto, e havia projetado sozinho o modelo da própria casa. Era incrível e linda. Uma mistura de modernização e simplicidade.
Mesmo assim, eu detestava ficar na casa dos outros. E detestava mais ainda quando faziam perguntas. Eu só respondia que estava cansada. Não era mentira, mas não era a verdade em si. Poucos sabiam a verdade.
Eu estava no quarto de visitas - que virara com o tempo o meu quarto, quando aparecia por lá -, sentada na cama e encarando o nada; pensando se algum dia cogitaria a possibilidade de voltar. Talvez dali a oitocentos anos.
- Você está bem? - Clarisse perguntou, colocando a cabeça para dentro do quarto. - Posso entrar?
Assenti. Minha amiga já havia se acostumado ao meu modo silencioso de falar e demonstrar sentimentos - se é que se pode dizer que tenho sentimentos. A vida havia sido dura comigo - mais do que deveria ser com qualquer um. Nada nunca foi fácil. E acabei aprendendo que daria ao mundo o que ele me deu: frieza e indiferença. Pode soar desalmado, mas eu me lembrava muito bem dos ocorridos de duas horas atrás. Aquilo foi a gota d'água. E eu simplesmente explodi. Simples assim.
Clarisse se sentou na beirada da cama, lembrando-me de que ela estava ali.
- Cass, você está realmente bem? - ela perguntou.
- Estou - menti. - Claro que estou. Sabe que não me apego a passado.
- Sei... Bem, o jantar está pronto. Se quiser...
- Estou indo - disparei, me levantando da cama.
Clarisse riu alto - se bem que ela nunca soube rir baixo.
- Garotas, vai esfriar! - Sr. Julio gritou lá da cozinha.
Ainda rindo um pouco, nós duas saímos do quarto. A chuva havia aumentado, e dava para ouvir a água bater no telhado.
- Vou ver como está o tempo - anunciei, indo em direção à porta.
Na verdade, eu pouco me importava com como estava o tempo; se chovia, nevava ou caía granizo, não fazia diferença mesmo. O que queria ver era como estava o movimento na rua.
Fui surpreendida por uma rajada de vento quando puxei a maçaneta. Lá fora estava pior do que a pessoa mais criativa do mundo poderia imaginar. Não estava chovendo. Deus estava jogando um balde supergrande de água em cima de Miami. Os coqueiros pareciam estar fazendo ioga: toca o chão de um lado, toca o chão do outro. Uma placa de "pare" decidira se rebelar e corria pela faixa em alta velocidade. Não havia absolutamente ninguém na rua. Ainda bem, porque a pessoa teria que ser um completo idiota para pôr o pé no capacho.
- O Fim do Mundo começou? - Clarisse gritou lá dentro. - Cassie, fecha essa porta! Estou virando um picolé aqui!
- Não, espere - murmurei.
Algo estava errado. Era apenas um dia de chuva em Miami - muita chuva. Mas lá no fundo eu sentia que algo ali estava fora de lugar - e não era o tempo. Uma sensação de pânico começou a tomar conta de mim. E teria gargalhado se não estivesse hipnotizada. Já havia fugido das coisas mais insanas que o universo havia atirado em mim, então porque, de repente, uma tempestade me assustava tanto? Mas a cada segundo uma sensação crescia dentro de mim: algo ruim estava acontecendo. Era algo além de Miami, ou dos meus problemas. Era algo que mudaria tudo.
Da onde veio esse pensamento? Eu deveria estar enlouquecendo. Ou estava apenas cansada. Muito cansada.
- Venha, Cassie - Sr. Martinez chamou carinhosamente.
- Estou indo - cedi finalmente.
A barra da minha calça estava molhada, junto com meus sapatos. Estava fechando a porta quando um raio caiu a cinco metros de mim. Um raio que jogou uma rajada de frio cortante. Mas... espere. Não era um raio. Era uma pessoa.
![](https://img.wattpad.com/cover/163757078-288-k771786.jpg)
VOCÊ ESTÁ LENDO
Em Busca da Origem - As Portas de Hades
Teen FictionNão quero fazer parte desse mundo... Mas acho que não tenho escolha. A história gira em torno de Cassie, uma garota com sérios problemas com a mãe - e com o mundo -, mas, após uma de suas muitas fugas, em uma tarde de estranha tempestade (afinal, é...