XLV - Do Outro Lado da Névoa

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CASSIE

Minhas unhas marcaram a madeira onde se cravaram, no assento, e eu não me atrevia a olhar para os lados, tendo então que contemplar o soalho do barco, que perigosamente continha um pouco de água. Passado um minuto, olhei para a outra margem. A cortina de neblina continuava lá, a alguns metros de nós, mas eu tinha certeza de que o barco estava em movimento.

Quase como se previsse, Caronte virou a cabeça para trás, me olhando com um sorriso presunçoso, como se eu fosse uma criança que não entendia algo absurdamente fácil, mas, sem responder, voltou seu rosto pálido para as águas.

– É um truque – Silena falou com amargura, encarando a cortina de névoa com os lábios crispados. – Parece estar muito perto, mas não está. É para aqueles que pensam que podem atravessar o rio a braçadas. Idiotas. Muitos morrem – mais ou menos, considerando que já estão mortos – porque pensaram que a margem do Estige estivesse logo ali: a poucos passos de distância. Isso não é nada, apenas um truque para ninguém escapar do pagamento de Caronte. Há coisas piores no Hades.

Continuei a encará-la, pasma, por alguns segundos sacolejantes, por dois motivos: um, por ela ter tido o trabalho de me explicar algo, quando poderia muito bem ter me ignorado; dois, porque a amargura na voz dela era de quem sabia que eram essas coisas piores, e odiasse falar delas.

Quando abri a boca para perguntar, senti alguém cutucar minhas costelas. Me virei para Alyon, que apenas desenhou com os lábios a palavra “Não”. Engolindo em seco, apertei mais ainda o banco, porque o barco fora atirado para cima por uma onda ridiculamente grande.

– Falta muito? – ouvi Clarisse perguntar, e eu podia apostar que ela estava enjoada: odiava andar de barco. E eu a entendia, porque já estava me sentindo prestes a vomitar.

– Você acha que a divisa entre o mundo mortal e o Hades é pequena, menina? – Caronte respondeu severamente, como se fosse uma afronta apressá-lo.

– Mundo mortal? – sussurrei, confusa.

– Até atravessarmos o Estige não estamos oficialmente no Mundo Inferior – Alyon explicou, se agarrando à borda do barco para não ser lançado para fora dele. – Você vai ver.

E depois de mais três minutos muito turbulentos – me parecerem horas – , finalmente vi a cortina de neblina realmente se aproximar. A poucos metros dela, Alyon falou, para mim e Clarisse.

– Olhem só.

Mal ele fechou a boca, e ultrapassamos a névoa, que deu uma sensação de refrescância úmida, mas foi algo muito breve. Quando passamos por ela, soltei uma exclamação de surpresa, e prendi a respiração: não havia o teto baixo, mas sim um céu negro e enevoado (pode-se chamar céu o que está abaixo da terra?), e, à esquerda, vi um palácio absurdamente grande, de pedra parecendo positivamente antigo, porém muitíssimo bem conservado. As torres e torrinhas se elevavam imponentes, com janelas com vitrais. No jardim da frente, havia flores estranhamente cintilantes – aquelas rosas eram feitas de rubis?! – , árvores de romã e grama verde – musgo. Do lado direito dele, havia o que eu pensei ser o único lugar vivo de lá: um campo gigantesco, que se estendia até onde a vista alcançava, de grama verde-dourada ondulante, na altura, mais ou menos, do tornozelo, enormes macieiras e árvores de romã, casinhas campeiras e acolhedoras, e milhares de formas – fantasmas, deduzi – brilhantes, envoltas por uma aura dourada, felizes da vida e saltitantes. Entrementes, o outro lado era o oposto exato: parecia uma foto antiga, em preto e branco; a grama era raza, morta e cinza, o chão coberto de cinzas, árvores mortas e plantas secas, e casas de pedra destruídas e caindo aos pedaços. Ali formas cinzentas e quase invisíveis se arrastavam, vagavam de um lado para o outro, sem destino aparente. Compreendi, enfim, que o primeiro campo, dourado e feliz, só poderia ser os Campos Elísios, das almas boas e puras, e o segundo, cinza e sem vida, os Asfódelos, daqueles que haviam simplesmente vivido: não haviam feito nada honroso ou digno, mas tampouco haviam sido assassinos cruéis e sangues-frio. E o palácio entre eles era a casa de Plutão... a morada de meu pai... Senti minhas asas se mexerem involuntariamente de orgulho atrás de mim.

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⏰ Última atualização: Mar 28, 2019 ⏰

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