VI - Asas Negras

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CASSIE

 O vento batia forte contra mim, que caía em queda livre. Alyon estava atordoado, e tinha que segurar Clarisse. Eu simplesmente viraria uma mancha de gordura na calçada. Havia desistido. Asas não brotariam das minhas costas. Não sabia se sentiria o impacto, ou se simplesmente abriria os olhos e estaria num salão de julgamento. Ou talvez minha vida apenas acabasse. Eu estava conformada.

Deus, só permita que acabe logo, pedi em oração.

A menos que eu aprendesse a voar, estava esperando que um Todo Poderoso tivesse ouvido minha prece.

Um pensamento que eu duvidava que fosse meu passou por minha mente. E se eu realmente voasse? Adotei o pensamento, mas não sabia o motivo. Imaginei-me voando, com asas, cortando o vento. O asfalto ficando distante. E então, senti algo estranho. Ouvi um vush, como se alguém tivesse aberto um enorme leque. Olhei por cima do ombro e senti que ia gritar – mais do que já tinha gritado segundos antes. Nas minhas costas, na linha das axilas, saindo das minhas omoplatas, brotaram asas enormes. Com cinco metros de uma ponta à outra, negras, idênticas às de corvos. As penas estavam sacudindo com o vento... E o asfalto estava a um prédio de distância. Abri as asas. Ai.

Nota para mim mesma: não abrir as asas em queda livre. Dói.

Mas, em um milésimo de segundo, estava planando. Flexionei os músculos novos das asas, impulsionando o ar para baixo; depois para cima. Não era tão difícil. Eu só não sabia o que fazer com os braços e as pernas. Parecia uma pata tentando levantar vôo. Depois que peguei o jeito, subi, e vi uma águia bem boquiaberta, e uma Clarisse cuja cara indicava que estava prestes a desmaiar – ou vomitar.

– Nem perguntem – falei. – Eu também não sei.

Eu não sabia como aquilo era possível. Se Deus me ouviu, resolveu mandar um pacote de Salvação com Bizarrice extra.

Nós voamos por um tempo, cerca de meia hora, e Clarisse fez mil perguntas; eu não sabia responder nenhuma. A sensação de voar era maravilhosa. Nada superaria aquilo, nem a maior montanha-russa do mundo. Não tinha preço. Era sentir a liberdade em pessoa, total e completamente presente. Eu simplesmente não queria descer mais. Mas aquilo não era comum. Não, eu nunca tive asas. Mas não estava reclamando.

Já era noite, e a visibilidade era bem baixa, apesar da luz da lua. Então decidimos pousar.

Voando mais baixo, vimos uma série de montanhas e áreas verdes. Eu não fazia idéia de onde estava. Vimos uma caverna em uma montanha, e decidimos silenciosamente que aquele era um bom lugar.

Alyon soltou Clarisse lá dentro, e, quando tocou o chão, ele já era completamente humano (ou completamente deus?) Eu pousei por ultimo. E quando fechei as asas, elas simplesmente sumiram.

– Isso é tão legal – Clarisse murmurou encantada, como se tivesse acabado de ganhar uma fada madrinha. – Eu quero asas assim!

– Por favor, não se jogue de penhascos para testar – Alyon pediu, e tive que concordar. – Vocês estão bem?

– É – murmurei. – Bom, o máximo possível sendo que... eu tenho asas. Não sei, tudo virou um filme da Disney, não posso julgar nada bem ou normal.

– Vamos dormir aqui? – Clarisse perguntou.

– Ah, acredito que sim. De casa aconchegante à caverna fria. Já dormi em lugares piores. Tem alguma idéia de onde estamos?

– Não posso ter certeza à noite. Amanhã, talvez. Agora estou cansada e com fome.

Alyon levantou a cesta. Céus, nunca fiquei tão feliz em ver morangos. Como ele havia pegado? Eu nem vira. Infelizmente, alguns livros de Clarisse haviam se perdido no caminho, sobrando apenas dois. Em pouco tempo, estávamos lutando contra o papel-filme que cobria as bandejas. Eu e Clarisse comemos cada uma apenas uma bandeja. Alyon comeu todas as outras. Eu não o culpei. Era um deus, tinha poderes, e deveria precisar de muito mais energia que nós duas juntas.

O.k., pare por aí, me repreendi em pensamento. Daqui a pouco vai querer adotar um cachorro.

Eu nunca fui de pensar assim. Dura como pedra, lembra-se? Pensar em Clarisse era uma coisa, ela era minha amiga. Alyon era um deus idiota que só trouxera problemas para mim. Agora havia uma alcatéia me perseguindo e eu tinha asas. Se começasse a nascer chifres eu juro mataria ele. Mas estava cansada demais, com a adrenalina baixando, e com sono. Só queria dormir e esquecer tudo. Talvez acordar no outro dia e descobrir que tudo não passara de um pesadelo. Não seria bem assim. Eu sabia.

***

Clarisse e Alyon estavam dormindo. Apenas eu estava acordada, sentada perto da saída da caverna, encarando a lua, imaginando se, se resolvesse fugir, poderia abandonar o passado. Mas não era assim que funcionava. Todas as lembranças estavam voltando. Voltando com tudo. Eu me recusava firmemente a não chorar. Eu era forte, não choraria. Mas aquilo estava me consumindo por dentro.

– Por favor, eu quero esquecer – pedi à lua, esperando algum daqueles mitos idiotas serem reais. Esperando ter todas as más lembranças apagadas da mente. Esperando esquecer todas as vezes que fugira. Esquecer todos os roubos. Esquecer Audrey. A maldita Audrey McConnel, quem arruinou com a minha vida. Quem eu odiava um dia ter chamado de mãe. E que, de certa forma, não conseguia odiar por completo. E eu queria odiar. Mas simplesmente não conseguia.

– Você está bem? – Alyon perguntou atrás de mim.

Me virei abruptamente, tentando esconder os olhos vermelhos que criavam uma barreira, trancando as lágrimas.

– Estou – murmurei. – Estava pensando alto. Volte a dormir.

Eu não vou chorar na frente dele, pensei.

– Você disse que não tinha pais – Alyon recordou. – O que aconteceu?

Os meus ombros caíram. Eu não suportava mais mentir. Acabaria explodindo se guardasse aquilo para mim, para sempre. Clarisse sabia. Ponto. Apenas ela. Agora, eu estava prestes a contar para um deus idiota. Inacreditável.

– Eu tenho mãe – falei, aos murmúrios. – Mas ela não é mais como antes. Não é mais a mesma. Não para mim. E pai... – dei de ombros. Simplesmente não sabia nada sobre aquilo.

– O que aconteceu com sua mãe?

Eu podia ouvir que ele queria ajudar... Mas eu desmoronaria em lágrimas se começasse a falar. De certa forma já havia começado. Droga.

– Depois que meus avós morreram – comecei, devagar, já encostada em uma parede -, minha mãe simplesmente... surtou. Ela enlouqueceu. Bebendo. Nós não tínhamos dinheiro para cobrir aquilo. E então... Eu tive que roubar. E odeio isso. Tenho tantas passagens pela polícia que acho que meu nome já deve estar marcado em um banco de lá. Eu já tentei fugir antes... Mas volto à força. Ela sempre me faz voltar. Ameaças, brigas... Ah – suspirei. – Mas dessa vez... não vou voltar. Não importa o que Audrey McConnel fale ou faça. Da última vez que ela queria que eu roubasse, me recusei. Cansei – toquei o ombro, onde um abajur fora quebrado em mim. Sem mais detalhes. – Foi a gota d'água. Já era. Sem chance de eu voltar. Ela não é minha mãe. Nem sequer é a mesma pessoa de quando eu tinha oito anos. É apenas uma sombra. Eu não vou carregar o sobrenome dela. Não quero nada que me ligue àquele monstro. Sou Cassie. Cassie Selíni. Eu adotei esse sobrenome. Não vai haver nada do passado em mim.

Antes de poder controlar, uma lágrima rolou pela minha bochecha. Eu queria chorar havia muito tempo. Mas simplesmente não podia ser fraca. Agora, ali estava a garota forte, revestida com ferro: se derramando em lágrimas.

Alyon, do meu lado, colocou uma mão em meu ombro. Ele não disse nada, e aquilo valeu mais do que mil palavras para mim. O silêncio é uma das melhores formas de ser sincero às vezes. E ali estava a prova. Eu entendi que era apenas uma criança. Uma garota de quatorze anos. Chorar não significava fraqueza. Significava, ali e agora, apagar o passado. Folhar uma nova página em branco. Deixar para trás toda a dor. Recomeçar.

Em Busca da Origem - As Portas de HadesOnde histórias criam vida. Descubra agora