Trigésima Anotação

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"Eu não sinto nada...".

Tenho para mim que a negação acima é uma das coisas mais sádicas e deliciosas de se dizer (risos), ainda mais quando temos a constante sensação de diversos anseios emaranhados em nossa mente, próximos de nos levar ao ápice de um colapso nervoso. Em outras palavras, acredito que a frase que deveríamos usar é: "Eu sinto tudo...", sentimos até demais, somos seres sentimentais, mas preferimos acobertar o máximo que pudermos para não sofremos com tais sentimentos tão pesados...

Ontem, eu disse isto a ele: "Eu não sinto nada...".

Hoje, eu o vi novamente.

Futuramente, eu não tenho ideia de onde isso irá me levar...

Ergui as minhas mãos ao peito. Eu já podia sentir o meu coração batendo em um ritmo acelerado, como uma máquina automotiva.

Tum dum... Tum dum... Tum dum...

Cuidado... Cuidado... Você está com medo...

O nosso corpo sempre dá um jeito de nos avisar sobre algo de errado, no entanto, mesmo com os seus alertas incessantes, eu nunca pude colocar uma rota de escape em prática.

Decifrá-los com agilidade e lógica sempre foi um problema para mim, ao menos isso eu já havia entendido.

Tum dum...

Já era a terceira vez neste fim de tarde em que eu o via. Quanto mais escuro, mais perto e real ele parecia estar. Às vezes consigo sentir até seu cheiro, no entanto, o que mais me assusta no momento...

Tum dum...

É que as suas "visitas" a mim, não ocorrem somente em meus pesadelos...

Tum dum...

Eu o escutava caminhando lentamente pelo corredor em frente a porta do quarto, no corredor; às vezes pela sala, quase que andando em círculos, como se procurasse algo. O quarto dos fundos também faz parte da sua escala de visitações, e apesar de eu não ir muito para lá, me intriga imaginar o que busca por lá, entretanto, pouco tempo depois eu pude demarcar o seu local preferido: o meu quarto. O quarto no qual eu e C compartilhamos.

Após alguns minutos em meio ao silêncio, na escuridão, eu sempre consigo ouvi-lo quando me deito e fecho os meus olhos, vagando ao meu redor. Me observando como se eu fosse um objeto a ser estudado. E mesmo que eu force o travesseiro contra a minha cabeça abaixo dos cobertores, a sensação de que ele ainda permanece ali continua como uma tortura, mas ainda pior de isso, é que quando a noite chega, eu dificilmente sei se estou acordada ou sonhando...

Me forcei a olhar novamente para fora, cautelosa. Da fresta da porta, eu o vi em frente a pequena adega abaixo da escada. Ele passava a mão por cada garrafa, as admirando enquanto lia minuciosamente cada palavra em suas etiquetas coladas ao vidro. Eu o ouvia, pronunciando cada rótulo em um soar quase imperceptível, mas ainda assim, a sua voz me parecia tão familiar em minha cabeça, que eu podia repetir cada sílaba.

"Glenmorangie Ealanta...", foi o nome da última bebida que leu.

Inspirei fundo desviando a minha atenção de suas costas. De qualquer forma, há um padrão para ele vir me atormentar, e isso só ocorre quando C não está presente o suficiente para que ele vá embora, mas apesar disso, há um problema ainda mais sério do que isso...

Por algum motivo que eu ainda desconheço, ele tem a mesma aparência de C.

Com toda certeza pode ser loucura minha, mas sempre que eu aproximo o suficiente, eu sei que não é ele. Eu sempre sei. Algo que me faz presumir que na maioria das vezes, ele somente quer que eu vá até onde está, afinal, ele sabe muito bem onde estou e que eu o observo, temendo que venha até mim, mas como todos os tipos de armadilhas, elas são montadas de forma prática para não serem notadas.

VERDADE ROUBADAOnde histórias criam vida. Descubra agora