Trigésima Nona Anotação

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Hoje à noite uma escuridão completa me deu as Boas-Vindas ao entrar em casa.

A? Chamei enquanto fechava a porta as minhas costas com cautela, não enxergando absolutamente nada a minha frente, logo a minha visão foi se acostumando gradativamente com o ambiente mal iluminado. Mesmo de noite, as luzes da vizinhança e penumbra ainda podiam nos guiar em meio a escuridão, mas as cortinas blecaute cumpriram com o que prometeram. Não havia um raio de luz sequer.

Inspirei fundo sentindo algo se emaranhar dentro de mim.

Eu havia demorado mais do que o esperado para voltar, e sentia o meu corpo ofegante devido à pressa que eu havia adotado para voltar.

Tomei rapidamente para mim o fôlego que me faltava. Para a minha tranquilidade, eu havia destrancado a porta ao entrar, o que significava que...

Espero que isso não seja uma pegadinha... Coloquei uma de minhas mãos contra a parede.

Eu estou aqui. Respondeu uma voz fraca mais a diante.

Semicerrando os olhos enquanto eu seguia em direção ao som, eu a encontrei.

Lá estava ela. O cabelo comprido e solto dava um contraste assustador ao restante de seu corpo pálido, acobertado pelo tecido fino e claro de sua camisola, algo que me fez soltar um sorriso. Confesso que se eu não estivesse acostumado com esse tipo de situação, eu teria dado meia volta.

Se quer tentar me matar do coração, este é o caminho certo. Retirei o meu terno do meu corpo e liguei a luz do corredor assistindo-a se encolher devido a claridade repentina. Posso saber o porquê de toda essa escuridão?

Ela continuou em silêncio sem me encarar, ancorada à parede. Por um milésimo de segundos, pude crer que ela havia captado algo em seu campo de visão que não era somente eu, mas talvez tenha sido apenas a minha imaginação.

Segui em direção as cortinas da sala, não sabendo ao certo o motivo de andar tão rápido, mas assim que peguei no tecido pesado, uma de suas mãos rapidamente chegou ao meu braço.

Por que está fazendo isso? Questionou. Por algum motivo que eu desconhecia, a sua voz estava completamente rouca, mas o que me deixou mais surpreso, foi a total desconfiança em sua entonação.

Fazendo o quê?

Abrindo as cortinas, você me disse para fechá-las.

Senti o meu cenho se franzir com rapidez. Eu havia passado o dia fora.

Quando eu disse isso?

Novamente o silêncio.

O "silêncio" – aquela insuportável réplica, não é?

Não... não disse. Confessou por fim.

O que está acontecendo com você?

Conseguiu descansar? Perguntei, afastando as minhas mãos das cortinas, e pude vê-la relaxar.

Sim.

Mentira.

Que bom, mas... Me inclinei sobre ela e logo os seus grandes olhos me encararam. Os lábios esbranquiçados e secos chamaram imediatamente a minha atenção, logo coloquei um de meus dedos sobre eles fazendo com que a sua cabeça se inclinasse em minha direção, e fiquei feliz por ela não ter recuado. Está pálida demais, não comeu? Ela deu de ombros, dispersa.

Passei o dia vomitando...

"Ótimo" ... Então nada de efeito algum...

Registrei uma nova anotação mental: "Ler novamente a bula dos seus remédios".

Venha, vou fazer algo leve para você comer.

Quando passei a andar em direção a cozinha, senti a ponta de seus dedos segurarem o tecido de minha camisa na região lombar de minhas costas. Tecnicamente, não era para fazer com que eu parasse, mas sim para que eu a guiasse.

Como estão as mãos?

Melhores. Olhei para o relógio digital do micro-ondas. Eram 00h13. Ainda havia tempo.

Irei dar uma olhada antes de dormirmos.

Okay...

Há aqueles que afirmam que só dizemos o que pensamos quando estamos bêbados, e me peguei pensando se isso funcionária com ela naquele instante, porque algo me dizia que estava tão perdida em si, que mal me notava ali, logo fiz com que ela se sentasse à mesa.

O seu enjoou ainda continuava presente, mas com o seu estado, eu duvidava que algo mais do que suco gástrico sairia do seu estômago.

Tome um pouco enquanto preparo algo. Falei colocando um copo cheio d'água a sua frente, o qual ela me pareceu completamente desinteressada. A, você precisa se hidratar. Duvido que tenha bebido algo hoje. Levando em conta como o som de sua voz arranhava a garganta ao sair, era inacreditável que não estivesse com sede.

A sua atenção se manteve em um canto da cozinha. Um espaço vazio ao lado de um dos armários, e lá ficou.

Levei uma das mãos ao queixo apertando a região enquanto um bufar involuntário saiu de mim. Céus...

A, beba... Pedi mais uma vez.

E nada aconteceu. Nenhum olhar sequer. Absolutamente nada.

Ela parecia não me ouvir.

Novamente o emaranhando em mim se moveu, revirando-se ainda mais, e a minha cabeça repentinamente começou a doer.

Eu somente queria que ela me ouvisse. Que aceitasse o que eu estava pedindo... Que me olhasse... Que fizesse algo.

A, por favor...

Nada novamente. Eu mal chamava a sua atenção.

De repente, senti um de meus braços se esticar. O copo voltou a uma de minhas mãos involuntariamente, e antes mesmo que eu notasse, agora eu bebia dele. Um gole, dois, três, até que parei, e só neste momento, quando andei até ela e segurei em seu maxilar com força, virando o seu rosto em minha direção, foi quando tudo em mim, me pareceu desligar.

Antes que contestasse o que quer que fosse, a minha boca foi ao encontro da sua e não pude controlar a forma violenta como chegou.

Você sempre é a primeira vítima de sua própria raiva, mas em nosso caso, às vezes essa distinção ficava confusa.

As suas mãos vieram imediatamente contra meu peito assim que a água que eu carregava passava para ela, e só diminuí a pressão quando a ouvi engolir. Não demorou muito para que se afastasse de mim, tossindo. Uma mão descansava sobre o peito enquanto puxava ar para os pulmões de forma desesperada, logo finalmente seus olhos me encararam de verdade, e de fato me viram ali.

O que pensa que está fazendo?! Exclamou entre dentes, e me peguei rindo enquanto limpava o restante de água que havia escorrido em meu queixo. Finalmente uma reação. Por que você está rindo?!

Porque... A encarei, e em meio a sua respiração alterada, só então notei que além de seu espanto, havia algo a mais.

Medo.

Merda...

Eu só... Comecei, mas não sabia como continuar.

E da mesma forma repentina como tudo aconteceu, saí da cozinha passando por ela como alguém que fugia de algo, no entanto, nós sabemos que este "alguém", não era uma pessoa em anonimato, mas sim eu. Eu e a minha desastrosa raiva.

Sr. C

VERDADE ROUBADAOnde histórias criam vida. Descubra agora