Décima Nona Anotação

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Cuidado.

Uma das coisas mais importantes que eu aprendi a zelar com o decorrer de minha vida foi através desta talvez enigmática palavra: "Cuidado". Em nosso dicionário mais moderno para os jovens, e quando eu digo isso estou me referindo aos inúmeros sites de pesquisa da qual temos acesso, recebemos em primeira mão algumas definições para essa palavra...


"Demonstração de atenção; em que há cautela, prudência;" – claro.

"Aplicação e capricho ao realizar algo; zelo, esmero;" – com certeza.

"Atenção maior em relação a; preocupação;" – interessante.

"Dever de arcar com seus próprios comportamentos ou ações de outrem; responsabilidade; por extensão, o que é alvo dessa responsabilidade." – essa causa uma pauta consideravelmente importante, não?


Podemos notar que há algumas formas de defini-la, mas poucos passam a entender que todas as definições levam ao mesmo lugar, ou pelo menos a um conjunto.

Cuidado.

Se não compreende o que eu quero dizer, ou aonde eu quero chegar com isso, apenas entenda que em uma situação onde que não temos o conhecimento, ou a consciência do significado dessa palavra, diminuímos ou menosprezamos algo do outro – talvez um sentimento; uma sensação – colocando como comparação a nossa capacidade de lidar com determinados assuntos, obstáculos, problemas etc.

Cuidado.

Em resumo, aprendi que se não for a sua própria dor, não chame de drama, cena, ou somente um episódio isolado, caso contrário, alguém sairá muito ferido, e este "alguém" não será você.

Cuidado, aparentemente de alguns anos para cá, é agora considerado abominável a capacidade de alguém não notar a dor do outro...

...

Após saímos do consultório ontem à tarde, ela dormiu o caminho todo de volta para casa ao meu lado no carro, e eu não fiz qualquer objeção quanto a isso. Bem, eu estava dirigindo entre trinta e quarenta quilômetros por hora, então era óbvio que eu não queria ter qualquer questionamento vindo tanto de mim, quanto dela, afinal, A havia passado a noite inteira acordada, portanto, eles não me serviriam de nada levando em conta o seu estado.

"Repouso e um ambiente calmo." Foi o que a sua psicóloga disse a mim, após A ter saído para beber um copo d'água.

Ela me chamou até o final do corredor de forma discreta, me encarando com um aglomerado de feições que custei a decifrar. Algumas vezes enquanto falava comigo, ela fixava os seus olhos nos meus, como se de alguma forma tentasse fisgar algo de mim, já outras vezes ela sequer conseguia me encarar, e isso sempre me deixa aborrecido...

Que lugar seria mais calmo do que a nossa casa?

"Ela também precisa se distrair do cotidiano às vezes, mas claro, de forma moderada." O que ela estaria tentando me sugerir com isso, malditas aulas de tricô?

Inspirei fundo e me peguei olhando ao redor, como se algo ali além de mim mesmo me incomodasse. Eu já estava de pé há um bom tempo, impassível enquanto andava de um lado para o outro vigiando os arredores. Para nós, sair casa já seria algo mais fora do cotidiano... ou talvez, ela queira que eu adote um animal. Isso distrairia A, não é? Eu posso arrumar um...

"Sinto que estamos progredindo..."

Sim, para algo pior.

Sai de meus próprios pensamentos quando ouvi o som da sua voz atordoada, me chamando do quarto escuro como uma criança, e só então vi o quanto eu já estava fora de mim. Era como se tivesse acordado somente para me resgatar de onde quer que eu estivesse, perdido dentro da minha própria cabeça.

C....? Assim que entrei e parei ao lado da cama, ela colocou um dos braços sobre os olhos por conta da luz que vinha do corredor. Que horas são...?

Ainda é você...? Era o que eu queria perguntar, mas como sempre, o receio de ouvir a sua resposta me manteve imutável.

Mais tarde do que imagina. Tentei olhar para o relógio sobre a cômoda no quarto, mas a baixa claridade dificultava a minha visão, então apenas me sentei ao seu lado. Como está a cabeça? A ouvi suspirar.

Muito melhor, me fez bem dormir.

Assim como fez bem os remédios que eu dei a você.

Subitamente uma de minhas mãos chegou até a sua cabeça, ajeitando os seus cabelos ao lado do rosto suavemente para que eu a visse. Quando o seu olhar chegou até mim, eu pude ver um sorriso triste formando-se em seus lábios. Ainda que estivesse do jeito que estava, ela continuava sendo a coisa mais bela que eu já tive em toda a minha vida.

Eu acabei com você, não foi...? De novo.

Hun, e quem foi que disse isso? Ela riu de forma breve e começou a se levantar.

A sua cara de acabado.

Você está com o estômago vazio e cheia de medicação, não deveria se levantar assim, espere eu fazer algo para voc...

Tudo bem. Interrompeu ela calmamente, andando devagar em direção a porta. Durma um pouco e descanse. O meu olhar apreensivo transpareceu por mais que eu me esforçasse para mantê-lo coberto, mas ao vê-la perder o equilíbrio de leve e apoiar-se à parede, já era impossível para mim esconder, e A o notou de imediato quando se virou para me encarar. Ela segurava-se ao batente da porta quando voltou a falar. Eu estou bem, agora se deite, eu já volto.

Sumindo de minha visão, ela seguiu o seu próprio caminho pelo corredor.

Eu não me deitei, assim como não dormi, apenas me levantei e a segui.


Eu tenho que voltar a ter o controle da situação.

Sr. C

VERDADE ROUBADAOnde histórias criam vida. Descubra agora