Décima Sétima Anotação

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Aos poucos, um feixe de luz escapava da fresta criada pela porta do banheiro. Ele pintava uma linha branca e comprida pela extensão do quarto até a cama, aonde chegou até o meu rosto me despertando.

Me sentando na ponta do colchão, apoiei os cotovelos sobre os joelhos. Eu mal enxergava um palmo a minha frente. Algo parecia ancorar-se em minhas costas, forçando-me a manter a posição, e quando olhei para trás, a fim de dissipar essa sensação, não havia nada em mim, no entanto, o que me deixou mais assombrado foi notar que também não havia ninguém ao meu lado na cama. Me peguei encarando novamente a porta entreaberta e uma sombra passou preguiçosamente pela parede do banheiro. Ela estava fazendo aquilo, de novo...

Me levantei de imediato, sem me importar com que horas eram e mal conseguindo distinguir os móveis ao meu redor. Apenas a limitada claridade emitida pelo feixe de luz me mostrava o caminho por onde eu deveria seguir no quarto escuro.

A. Chamei assim que parei em frente a porta. A vontade de apenas empurrá-la com tudo me consumia como fogo, porém, ainda não fazia muito tempo desde a nossa última briga por conta de atitudes como essa, e por isso, apenas levantei uma das mãos e bati de forma incerta contra a madeira escura. Tudo bem, por aí? Perguntei, mas não houve resposta, e me lembro de olhar em direção a janela escura ao meu lado. A, ainda é de madrugada... E como antes, silêncio novamente permaneceu, como um castigo.

Bem, eu já havia esgotado os meus bons modos.

Quando empurrei a porta e entrei, imediatamente eu a encontrei de pé em frente ao espelho. Ela mal havia me visto entrar, na verdade, pareceu não me enxergar até que eu parasse ao seu lado, onde pôde me ver no reflexo do espelho. O semblante que encontrei em seu rosto não pertencia a ela.

Ei, vamos nos deitar... Tentei soar da forma mais equilibrada possível, mas até o momento eu tenho dúvidas se ela ao menos escutou o som da minha voz.

Quando tirei a minha atenção da pessoa refletida no espelho e foquei na que estava ao meu lado, foi quando notei uma de suas mãos descansando sobre o pescoço. Consequentemente eu a peguei sem saber ao certo o porquê, e ela se afastou imediatamente de mim assim que olhei para o que havia por de baixo dela, em sua pele. Finalmente me encarando, era como se ela tivesse acabado de voltar a realidade e prontamente, as suas feições mudaram assim que os nossos olhares se encontraram.

O que você está fazendo de pé a essa hora? Indaguei, logo a vi demonstrar um sorriso cansado. Os seus lábios haviam perdido a cor rosada que tanto me cativavam.

Desviando o seu olhar de mim, ela deixou a cabeça pender-se para baixo.

Não some, não é....? Perguntou a mim, rouca, contudo, parecia ter perguntado mais para si mesma, e demorou para que eu entendesse sobre o que ela estava se referindo, logo um mal pressentimento terrível passou por mim.

Sobre o que você está falando? A minha voz saía como um sussurro.

Você ainda consegue vê-la, mesmo de longe, eu sei que consegue... Ela se virou em minha direção e me encarrou enquanto passava uma das mãos sobre a cicatriz de um corte com comprimento de uma mão adulta ao lado direito de seu pescoço. Sua extensão chegava até a clavícula. E mesmo sendo clara, era perceptível que a sua cicatrização não havia sido tratada com cuidado.

Neste momento, algo em mim me deixou amargurado. Ainda continuo com esse sentimento desconfortável em meu âmago.

Não... Ela enfatizou. Não some...

A... Eu havia passado a ficar sem ar. Como se algo de repente começasse a bloquear as minhas vias respiratórias.

Por que, C? Ela passou a esfregar a cicatriz com força, como se quanto mais intensidade ela colocasse contra a pele já lesionada, ela fosse desaparecer de seu corpo.

Ei, pare com isso... Eu pedi, sabendo que seria em vão.

Por quê? Indagou, e me vi engolir seco. Por quê?! Gritou, questionando ferozmente não a mim, mas sim algo dentro de si ou além de nós e, posteriormente, as suas mãos passaram a correr pelo restante de seu corpo. Era como ver alguém sendo consumido por fogo, desesperadamente tentando apagar as chamas que se espalhavam por seus braço e pernas, mas o problema era que não havia nada ali. Por que ele fez aquilo comigo?! O que eu fiz?! As outras também não somem! Por quê?! A sua entonação era dolorosa demais. Parecia arranhar a sua garganta tanto quanto machucava a mim. Eu não conseguia me mover, eu não conseguia tirar os meus olhos dela.

Subitamente, inspirei fundo o pouco de ar que ainda me restava naquele cômodo, o cômodo que de repente havia se transformado em um lugar tão pequeno e sufocante. Para mim, naquele instante, simplesmente não havia sentido no que estava acontecendo a minha frente, pois dia após dia ela as via em sua pele, então por que agora estaria...

Por quê?! Ela continuava a repetir sem parar.

Ah, eles voltaram... Pensei, logo senti o meu corpo inteiro pesar novamente.

Sim, "eles", os "surtos", as "crises", há diversos nomes para usarmos... Já fazia algum tempo que acontecimentos como esse não ocorriam, sendo quase raros para os dias de hoje, mas como eu já imaginava, uma hora, ou outra – e de maneira progressiva – eles acabariam voltando para as nossas vidas, mostrando de um jeito catastrófico que só havia nos dado uma folga, e que cobrariam caro por ela.

A, por que você não toma um banho na banheira? A água morna vai relaxar você, acredite... Sugeri passando devagar por ela, mas não houve resposta. Ela estava focada demais no reflexo de si mesma no espelho para prestar atenção em mim. Eu conseguia ouvir a sua respiração rápida e ofegante, estava me fazendo ficar inquieto demais. Eu vou ligar a ág...

Não! A sua advertência me deixou entorpecido. Havia uma tensão totalmente incomum ali, e a única coisa que pude fazer, foi me virar em sua direção, preparado para o que pudesse acontecer, e me peguei avistando de imediato as suas pernas que tremiam sem pausa.

Céus...

A camisola, com a barra na altura dos joelhos, mostrava o quanto ela havia emagrecido nos últimos anos, mas, além disso, mostrava algo que eu não queria que ela visse.

Tudo bem, ... Eu disse tirando a mão da torneira. Vai ficar tudo bem... Eu me aproximava devagar, com as mãos na altura do peito, as palmas estavam viradas para ela, mas como se todas as suas forças fossem sugadas, ela se desequilibrou, e de modo repentino, as suas pernas perderam as forças me fazendo correr para mantê-la de pé.

Aceitando a minha ajuda, ela desabou em meus braços, chorando como uma criança em quantidade, mas com um pesar tão sombrio quanto alguém que perdeu algo em si mesmo, ou alguém. Eu fui ao chão com ela em meus braços, a envolvendo-a a mim. Fiz de tudo para que ela se sentisse protegida, amparada por mim, mas a única coisa que eu podia fazer naquele momento era dizer que tudo ficaria bem, não importa o que aconteceu ontem, há uma semana, há um mês, há um ano ou mais. Eu a protegeria amanhã, na próxima semana, no próximo mês, e nos próximos anos em que a vida me permitir. E se esse período acabasse, não haveria céu, ou inferno, que me impediria de continuar com o meu objetivo:

Ficar ao seu lado.

Sr. C

VERDADE ROUBADAOnde histórias criam vida. Descubra agora