Trigésima Sexta Anotação

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Certa vez C disse a mim que eu parecia colecionar os detalhes das pessoas como alguém que coleciona obras de arte, e que às vezes pegava-se pensando quais deveriam ser as minhas obras mais marcantes. Eu, particularmente, adorei quando ele disse isso a mim. Essa nova forma de "guardar" determinadas características de alguém, tanto físicas, quanto subjetivas, mas mal sabe C, que eu não me importo com quaisquer que sejam as minhas obras mais marcantes, mas sim com quais detalhes eu aparentemente passei a guardar dele em meu quarto escuro repleto de quadros seus com o decorrer de nossas vidas, juntos...

...

Apesar dos diversos ensaios mentais sobre o que e como fazer, aparentemente tudo parece ser mais difícil, ainda mais quando tentamos colocar em prática...

Sorri sem jeito ao notar o meu próprio estado. Me lembro claramente de escutar quando ele estranhamente sugeriu a mim para que eu tentasse arrumar amigas, novas amigas, e devo ressaltar que foi especificamente e, explicitamente, na conjugação feminina, mas assim que ela me pegou a encarando, eu senti me rosto desviar automaticamente. As minhas bochechas pareciam estar formigando, e ela, assim como eu, parecia surpresa com a situação, algo que fez com que eu me encolhesse ainda mais sobre a cadeira.

Talvez essa não seja a melhor das formas de se arrumar uma nova amiga...

Pensando bem, essa sugestão de C foi há muito tempo.

Por causa dos meus olhares "sutis", ela já havia vindo até a minha mesa duas vezes perguntando se eu gostaria de pedir algo, totalizando três vezes, no entanto, pelo constrangimento, acabei de fato pedindo. Como resultado disso, agora eu me sentia estufada de tal modo que, quando eu chegasse em casa dizendo que estou completamente cheia para até mesmo comer algo para tomar com os remédios, C não acreditaria.

Se eu tivesse como, eu teria tirado fotos.

Quase que institivamente o meu olhar seguiu em direção as minhas mãos. Elas ainda ardiam a qualquer movimento de meus músculos presentes na palma, logo ao invés de meu rotineiro caderno e uma caneta, minhas mãos estavam ocupadas enroladas em fitas de gazes apertadas. Pelo menos a dor não me deixava totalmente absorta de tudo a minha volta.

Os croissants recheados são para a mesa quatro. Não esqueça o suco. Informou o alguém da cozinha a uma das garçonetes dentre a fresta do balcão por onde se passavam os pratos.

Olhei em direção a janela da cafeteria. Hoje ela estava distante de mim, pois adolescentes mergulhados em uma pilha de livros a ocupavam enquanto bebiam refrigerante em dois copos imensos, mas o que mais me preocupava nisso, era que eu não iria conseguir ver quando ele estivesse chegando...

Você é escritora? Perguntou uma voz acima de mim me assustando.

Levantando a cabeça com rapidez, encontrei ao meu lado a garçonete que eu via quase todos os dias nesta cafeteria, a qual eu encarei muitas vezes hoje.

Ela sorriu sem jeito ao ver minha reação surpresa.

Sinceramente, eu estava mais surpresa por ela não me perguntar pela quarta vez se eu gostaria de pedir algo.

Desculpa, é que eu gosto muito de ler, e eu também escrevo, mas... Ela segurava um bule de café em uma das mãos enquanto a outra balançava desajeitadamente de um lado para o outro enquanto falava. É que eu a vejo escrevendo todos os dias aqui, por isso pensei... De uma maneira repentina, ela se interrompeu balançando a cabeça de um lado para o outro. Desculpa, q-quer café?

Uma breve risada escapou de mim e isso a fez rir, mas sei o quanto ficou constrangida.

Tudo bem. Respondi timidamente com um sorriso que eu mal sabia que poderia dar. Dificilmente eu falava com mais alguém além de C e a minha psicóloga. Eu não sou escritora, mas... Eu também gosto de escrever...

Surpreendentemente, ela me pareceu ainda mais contente com o fato dito.

Que legal! Bem, aproveitei que hoje você estava livre para que eu perguntasse... Continuou diminuindo o tom a cada palavra dita. Aparentemente ela estava se referindo a ausência de meu pequeno caderno.

Um tilintar chamou a nossa atenção, e um novo cliente havia entrado e logo outra garçonete, uma loira que já havia me atendimento em outros dias, chamou pelo nome a garota a minha frente.

"Clarie" foi o nome que ouvi, e a única coisa que pude pensar, foi o quanto esse nome, que, ao mesmo tempo, era tão simples e bonito, combinava perfeitamente com ela.

Você pode atender para mim, Izabel? Vou fazer o meu intervalo agora. Perguntou em seguida, logo a chamada Izabel assentiu revirando os olhos.

Me erguendo de forma sutil, rapidamente o meu olhar seguiu em direção a janela, e quando não vi carro algum estacionado ao outro lado da rua, pude me acomodar novamente em meu assento, no entanto, surpreendentemente fiquei sem entender o porquê de ela ainda continuar parada ao meu lado, logo diante de meus olhos, ela desamarrou o avental.

Bem, prazer, meu nome é Clarice. Me desculpa por incomodar.

Correção, "Clarice".

Nã... Não incomodou. A minha voz saiu mais alta do que eu esperava, algo que fez com que ela sorrisse.

E o seu? A encarei sem entender, logo ela completou: Qual o seu nome?

Passei uma das mãos sobre o rosto afastando uma mecha de cabelo, e senti a sua atenção em minhas gazes. Seria ruim se ela me perguntasse o que houve, por isso as movi rapidamente para de baixo da mesa.

Assim que eu disse a ela o meu nome, continuei completamente desajeitada a sua frente.

Que nome fofo! Até parece um apelido. O meu me lembra o de uma senhora. Brincou revirando os olhos.

Me peguei em uma súbita vontade de contrariá-la, mas me mantive em silêncio. No entanto, fiquei feliz por poder rir com o seu pensamento, afinal, ela aparentava ser mais jovem do que eu.

Agora eu realmente não irei mais incomodar. Disse em meio a um sorriso e se virando para o que parecia ser a entrada permitida somente aos funcionários. Vou indo, até...

Sobre o que gosta de escrever ou... ler? Eu queria perguntar, mas...

Eu? Perguntou surpresa, logo me vi espantada.

Por um momento, eu realmente pensei que isso somente havia se manifestado em minha cabeça, mas eu não havia pensado, eu simplesmente havia perguntado em voz alta.

Senti que a minha voz havia deixado de existir. Mesmo já tendo trocado algumas palavras, eu não sabia dizer ao certo o que estava acontecendo.

S-sim. Por fim pude soltar. Não pude ver sua reação, pois passei a encarar a mesa como se minha vida dependesse disso.

De repente, e de uma maneira desajeitada, a vi se sentar à minha frente, colocando o bule sobre a mesa. Ela mesma me pareceu corar com a própria atitude, algo que me fez pensar que só talvez, ela também estivesse ensaiando como eu...

Olha, é uma lista bem longa. Começou em meio a um sorriso brincalhão. Eu...

C, eu acho que consegui uma amiga.

Srta. A

VERDADE ROUBADAOnde histórias criam vida. Descubra agora