Quadragésimo Sexto - Acontecimento

64 34 1
                                    

Parte II 

Você foi a mentira que eu mais acreditei, e na ânsia de me perder, eu fantasiava a sua presença para não me sentir tão só.

...

Nathaniel

E novamente ao outro lado da linha durante o nosso telefonema, foi quando eu pude escutar como David Woringthon pigarreou de forma exasperada próximo ao alto-falante de seu celular, e se eu não me engano, essa era a quarta vez em um intervalo de poucos minutos em que eu era submetido a ouvir esse som rouco saindo de sua garganta, e por mais que eu o ignorasse, era quase impossível impedir que as lembranças do meu velho pairassem em minha mente, e assim como ele, David provavelmente havia fumado muitos cigarros em algum período de sua vida.

- Agora não há com o que se preocupar. – Comecei para quebrar o silêncio repentino que havia se formado entre nós após a revelação de minha "descoberta".

Helen, que havia se juntado a nós há apenas alguns minutos após o início de nossa conversa, como sempre também se mantinha em silêncio, impassível como se tivesse algum tipo de deficiência na fala.

Subitamente me peguei verificando o contador de minutos da chamada, e quando me certifiquei de que a ligação não havia caído, percebi que já estávamos há mais de vinte minutos no meio deste diálogo e, infelizmente, a única coisa que eu estava conseguindo tirar dessa conversa, era o quanto David não queria facilitar o meu trabalho.

- Mas eu tenho que dizer... – Acrescentei. – Fiquei curioso para saber o porquê de vocês não terem me informado isso antes em nossa conversa. Querendo ou não, é algo bem relevante, ainda mais levando em consideração um caso de desaparecimento...

Se distanciando sutilmente do seu celular, eu pude ouvir murmurar algo, no entanto, eu não sabia dizer se isso era direcionado a mim ou a sua esposa.

- Estava entre os documentos. Nós os entregamos a você. – Retrucou solidário e não pude deixar de sorrir ao me ancorar sobre o carro ao meu lado.

- Os documentos apenas me dão uma informação crua e literal, logo os motivos sempre são omitidos dentre as inúmeras letrinhas miúdas. – Coloquei a mão dentro do casaco e retirei o meu maço de cigarros.

- Ele é o nosso filho...

Deixei um bufar quase involuntário escapar e, felizmente, eu não sabia dizer se era pela informação dita, ou por uma simples e pura vingança. Talvez os dois.

- Sim. – Enfatizei antes de continuar como um raio. – Afinal, vocês o adotaram legalmente e eu não estou questionando isso. – Eu não precisava estar lá para saber perfeitamente que encararam o aparelho com diversos tipos de feições, mas ainda assim, eu continuei. – Eu posso até estar pensando demais, mas vocês o adotaram com cinco anos de idade, na verdade, praticamente beirando o aniversário de seis anos, não é? Já ouviram dizer que crianças dessa idade já possuem uma boa capacidade de armazenamento em suas pequenas cabecinhas?

- O quê...? - Questionou em alto tom depois de uma sútil pausa. - E o que está querendo nos dizer? O que isso tem a ver com o que quer que esteja fazendo agora? – Indagou fazendo com que eu soltasse um suspirar cansado, enquanto eu observava o movimento da cidade.

Sinceramente eu nunca soube ao certo se há de fato uma cegueira natural em meus clientes, ou se sempre são estúpidos o suficiente para sequer ligarem alguns pontos, ou imaginarem outras opções e cenários para se seguir. De qualquer jeito, a forma regular com que as sinapses de seu sistema nervoso central não funcionam da maneira correta, sempre me fazem lucrar.

VERDADE ROUBADAOnde histórias criam vida. Descubra agora