No caminho para Porto Izmael paramos em um restaurante de rodoviária, era grande e entre uma viagem e outra, os ônibus faziam suas paradas e os passageiros cansados aproveitavam para esticar as pernas e comer alguma coisa.
Nos servimos de uma comida leve, nada que pudesse me causar sono durante a viagem, apesar de que Eleonor não dormia muito — não consigo me lembrar da última vez que a peguei dormindo. Era sempre assim, no momento em que me deitava ela estava entretida com um livro ou no celular e quando acordava, Eleonor já estava desperta.
Acho que sua mente trabalhava sem intervalos, talvez ela produzisse até mesmo enquanto dormia, calculo que ela durma algo entre cinco ou seis horas por noite. Quem poderia saber o que passa naquela cabeça enquanto estou dormindo?
— Você escolheu um excelente lugar para sentarmos, — minha esposa analisava a mesa branca com cadeiras de ferro que sentamos.
— Do jeito que você gosta: longe do corredor, próximo à porta e com uma excelente vista da janela — abri um sorriso sarcástico.
— Sei que você não vê necessidade, mas gosto de ter controle de todas as entradas. Você sabia que quase 70% das pessoas que são alvejadas por tiroteios em espaços públicos estão cercadas e sem um bom ponto de observação?
— Não é possível. Você inventou essa estatística...
Ela me deu um olhar divertido, porém debochado.
Manias da época na polícia? Talvez, na verdade, eu até gostava, essas normas me lembravam da organização militar. No exército gastávamos mais tempo evitando xingamentos do que efetivamente produzindo algo útil, depois daquilo eu nunca mais consegui sair do quarto sem arrumar uma cama e dobrar os cobertores. Estava mais do que treinado, na arte de tarefas desnecessárias.
— Sabe, andei pensando na mensagem, outra vez — lá estava minha esposa exercendo sua curiosidade.
— Sério? Na hora do almoço? Vamos falar sobre isso outra vez?
— Calma, calma. Deixa que eu ainda não expliquei. Estava querendo só sua opinião em um assunto casual. Conversa de almoço se preferir — ela pontuava enquanto brincava com o garfo, deslizando-o suavemente pelos dedos.
Mastiguei aquela comida, que surpreendentemente estava deliciosa, nunca poderia imaginar que aquele local serviria algo apetitoso, então disse:
— Fala, Eleonor. Sobre o que você quer minha opinião?
— Você é cristão, certo?
— Sim, eu sou. Criado e batizado em uma igreja, até tenho uma bíblia.
— Você acredita no diabo? Digo, o pai dos pecados como disse seu irmão na mensagem.
Nesse momento uma senhora de meia-idade, sentada em uma mesa bem próxima, fez questão de demonstrar em sua cara, interesse em nossa conversa. Eleonor percebeu, e claro, detestou. Optei por ignorar a senhora nos olhando e respondi a pergunta:
— Sim, eu acredito. Mas pela mensagem, se bem me lembro e não gostaria de lembrar, ficou claro se tratar de um homem.
— Exato! Então ai vai minha percepção daquela mensagem: todos os elementos sobrenaturais são...
— Não, Eleonor. Não tente. Isso não é um caso. Nós vamos ao velório, falamos com todos e vamos embora, seguiremos nossas vidas.
— Tá bom, tá bom. Nossa, só queria conversar — não parecia que ela desistiria.
Começamos a comer, e a cada garfada naquele arroz com legumes, ou melhor, a cada corte naquele bife misteriosamente macio, ela me olhava com a intenção de retomar o assunto.
— Olha, se minha opinião de marido não serve, vou dar uma de parceiro de negócios: Eu não aceito pegar esse caso. Se você prosseguir nessa, não vou participar.
Eleonor respirou, tenho certeza que sua objetividade de detetive queria responder "ótimo, então vou sozinha", contudo, seu lado companheira pesou mais. Pensou algumas vezes antes de argumentar:
— E por que você trouxe sua arma?
— E por que eu não traria? Estamos indo para uma cidade estranha e meu irmão escreveu uma mensagem bizarra antes de um suicídio — nesse momento Eleonor tentou me interromper, mas eu a antecipei — tudo bem, "suposto" suicídio.
A senhora bisbilhoteira nos olhou novamente, estava realmente ficando incômodo. Ela nem tocava naquele café, a pobre velha sozinha só se interessava pela nossa mesa.
— Então, suponho que se algo acontecer naquela cidade, nós dois vamos intervir e...
— Não, não vai acontecer nada. Minha opinião final. Eu tenho direito a voto, eu não sou seu motorista.
Nesse momento ela sorriu, de certa forma cinicamente, para me provocar:
— Claro que você não é só um motorista.
— Ótimo.
— Você também é o amante.
Foi quando a senhora engasgou, talvez estivesse muito concentrada em nossa conversa. Disse algo como "céus" enquanto raspava a garganta e tomava água.
— Eleonor, eu juro por Deus que...
— Brincadeira, brincadeira! Não fica nervoso. Eu me rendo, você venceu. Nada de caso. Seremos apenas o casal Garcia.
— Tudo bem, amor. Vou lá pagar a conta, já volto.
Limpei a boca com o guardanapo e me levantei para andar até o caixa. Assim que dei às costas para a mesa, Eleonor aproveitou para provocar a velha ao nosso lado. Debruçou sobre a mesa da mulher e com um sorriso, disse bem baixinho:
— Ele é o amante sim. Nós dois só pensamos safadeza, tenho certeza que a senhora me entende, né?
Depois ela sussurrou algo no ouvido da mulher, tenho até medo de imaginar, seja o que for deixou a senhora corada. A pobre idosa levantou horrorizada, pegou sua bolsa e foi embora. Acredito que ela não tenha nem mesmo pagado a conta.
Balancei a cabeça negativamente, enquanto sorria para Eleonor. Confesso que não deveria, mas achei engraçado. Ela apenas levantou os ombros e me sussurrou "achei que ela queria uma amiga".
Paguei pela excelente refeição e voltamos para o carro. De certa forma não queria chegar em Porto Izmael, cada parte minha gritava em negação, seria tão fácil dar meia volta e pegar o caminho para casa, contudo nosso destino estava traçado e nada poderia impedir o que iria acontecer naquela cidade.
Aquela maldita cidade.
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Até semana que vem! Aquele abraço!
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A Sociedade de Porto Izmael (Mistério/Policial/Aventura)
Mystery / ThrillerLIVRO COMPLETO O casal de investigadores, Eleonor e Heitor, recebem a noticia do suicídio de Alexandre, o irmão de Heitor, e resolvem dar o último adeus ao caçula da família Garcia Torres, contudo o casal descobre o passado sombrio do rapaz e os in...