Capítulo 29

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Algumas das missões de paz da ONU, organizadas pelo Conselho de Segurança das Nações Unidas, eram verdadeiros fracassos. No tempo em que exerci o cargo de Primeiro-tenente, me pareceu uma boa ideia ser um boina azul nas forças de paz. Passei algum tempo na missão do Haiti, antes de voltar para meu lar.

Dentre os objetivos estavam, manter a paz, distribuir alimentos e garantir eleições livres e justas no país. Como tudo na vida, nada é como deveria ter sido, principalmente quando envolvemos tanques e homens armados, na sua maioria brancos, em um país que sofria com a falta de renda e o impacto de um recente terremoto.

Nossa tropa era submetida ao major Thomas Willian Rickenburg, um canadense sisudo que tratava todos com distanciamento e um certo grau de profissionalismo. Obedecendo suas ordens conseguimos resultados interessantes controlando revoltas e desarmando grupos revolucionários insatisfeitos com a intervenção internacional.

E por algum motivo, lá estava eu, novamente, com meu fardamento militar e meu capacete azul da ONU, andando pela vila devastada. Aquele tremor de terra foi totalmente inesperado, deixou centenas de mortos e desabrigados, perdemos alguns integrantes de nossa comitiva, e claro, estávamos exaustos e com saudade de casa.

Algumas mulheres com crianças no colo se aproximavam de nós desesperadas, os soldados tentavam organizar uma fila para entregar comida, infelizmente o caminhão pipa com água potável, só chegaria no dia seguinte.

Mesmo sem saber o idioma local, o crioulo haitiano, ou até mesmo francês, resolvi me arriscar e andar sozinho por aquele local e avaliar as perdas e danos da população, os casebres do vilarejo não eram feitos com tijolos cerâmicos ou concreto, eram todos feitos de uma espécie de taipa de pilão, um tipo de terra comprimida em formas de madeira, logo quase nenhuma ficou de pé com um terremoto de 7 graus na escala Richter que assolou a nação.

Seguindo por uma rua estreita cheguei até uma casa com telhado tombado, ao redor de alguns escombros, senti um leve arrepio, me lembrava daquela casa. Meu coração sentiu um aperto e a garganta um nó, sabia o que estava do outro lado daquela porta de barro e gravetos, contudo precisava entrar.

Movi a porta que estava pendurada, me agachei para passar pela passagem destruída e entrei naquele humilde recinto devastado. A casa deveria ter apenas três cômodos, uma sala, que dividia espaço com uma cozinha, um quarto e um banheiro. Na casa de paredes tombadas, no canto ainda remanescente, estava aquele homem, com seu filho no colo.

Eu me apresentaria, e ele diria seu nome, Emannuel Jean e seu filho Gerard. Perdeu a esposa no terremoto e ficou sem uma de suas pernas, sem provisões, principalmente água, não sobreviveria muito tempo.

Meus pensamentos foram cortados por aquela voz, que ressoou atrás de mim:

— É uma memória inusitada, Heitor. A prova cabal de que meu irmão mais velho não é nenhum anjo como todos pensam.

Sem olhar, apenas pela voz de Alexandre, constatei que o pesadelo não era real, outra memória desagradável acompanhada do meu "espírito do natal passado". Virei o corpo e encarei bem a cara de Alexandre, meu irmão em sua versão mais jovem não era o responsável pelo tráfico de mulheres em Porto Izmael, isso era tarefa de sua versão mais velha, mas olhar em sua face me enfurecia mesmo assim.

— Seu desgraçado, se não soubesse que tudo isso é um sonho eu daria um soco na sua cara. Sequestrar mulheres jovens? Você faria qualquer porcaria por dinheiro, certo?

— Ei! Calma ai, justiceiro! Sou apenas um presente do seu inconsciente! Não fiz nada, estamos aqui para falar da merda que domina sua mente e não das merdas que fiz em vida. — Dizia Alexandre acenando com as duas mãos.

Tentei me acalmar, dei uma boa olhada no estado daquele casebre, no homem sentado a minha frente e em seu filho, que o abraçava. Alexandre se aproximou e colocou sua mão direita em meu ombro, revirei os olhos, mas não fiz nada.

— O garoto tinha a idade da Vitória? A vida é engraçada, não? Nessa época você explodia de instinto paterno, contudo não conseguiu salvar o garoto. Agora, você desistiu de ser pai e a vida te obriga a ficar com minha filha.

— O que você quer aqui, Alexandre? Por que estou lembrando disso?

Alexandre me ignorou e prosseguiu:

— Você não falava o idioma dele, ele tentou balbuciar alguma coisa que você pudesse entender. Tudo que você queria era carregá-lo para um hospital militar com o filho, mas ele não quis, o homem só queria morrer sossegado com a certeza de que seu filho ficaria bem.

Ele tinha razão, após alguns instantes de uma conversa confusa tudo que captei foi o nome dele e do filho. Ele apontou para o garoto que dormia em seu colo e me pediu para que o levasse daquele lugar, eu aceitei e quando me preparava para carregar o garoto, tudo aconteceu.

Major Rickenburg entrou pela porta com dois soldados, ele estava me procurando para apurar a distribuição de alimentos. Expliquei a situação do homem e de seu filho, disse que eles precisavam de cuidados médicos e que os levaria para enfermaria militar.

— ... Porém, todavia, contudo, no entanto... o major não autorizou. Se recebesse o homem lá, seria obrigado a receber todos os civis da região. "Sem exceções, Primeiro-tenente!" Um homem rígido, eu diria. O que acontece depois?

Com angústia me recordava perfeitamente o que acontecia depois.

— ... Eu fiquei nervoso, disse que pelo menos levaria o garoto comigo. O major disse que não poderia, ele insistiu que os médicos civis e as pessoas da campanha de humanização chegariam em algumas horas, eles resolveriam tudo.

— Foi quando você cometeu o erro certo?

— Sim. Levantei meu rifle na direção do meu superior, disse que não daria um passo sem o garoto.

— Você acredita que se estivesse mais calmo, poderia ter negociado mais, não? Antes que o soldado acertasse sua cabeça por trás, com o cabo do rifle, e o desmaiasse. Você acordou na enfermaria no dia seguinte, por sorte o major entendeu sua fúria e nada daquilo foi relatado, contudo, você não encontrou o garoto e o pai na cabana, ninguém tinha informações em meio ao caos causado pelo terremoto.

As palavras de meu irmão invadiam minha mente, aproveitei o momento para tentar me despedir do homem e seu filho, naquela memória da casa em pedaços, nenhum militar entrou no lugar, no meu pesadelo só existia a família e eu, além do meu guia, Alexandre.

Me agachei na frente dos dois, que permaneciam calados, retirei o capacete e com tristeza me desculpei:

— Pardon! Je jure que j'ai essayé... Juro que tentei...

Alexandre se aproximou e tocou meu ombro novamente, me ajudou a levantar com certo carinho, e pela primeira vez não senti um ódio devastador de sua pessoa.

— Seu francês é horrível... Você não acredita que é hora de parar de tentar carregar o mundo nas costas?

— Eu não tento carregar o mundo nas costas, Alexandre...

— Você não tem culpa. Você enfrentou seu superior para tentar salvá-los, não existia nada que pudesse levar o Major a reconsiderar. Você deixou bem claro que existiam pessoas precisando de ajuda, na certa esse garoto foi salvo e levado para Porto Príncipe. Você deve parar de se culpar por tudo, Heitor! Minha mãe não morreu porque brigamos, ela estava doente. Helena não morreu porque vocês não a salvaram, ela foi assassinada por um psicopata. E eu tive o que merecia!

— Isso é besteira, eu não...

— Pare de se culpar por tudo! Você é forte, meu irmão. Tem pessoas precisando de você, mas elas precisam da melhor versão de você, Heitor!

De alguma forma, minha mente me deu um presente, aquele não era o Alexandre real, mas era o Alexandre ideal. O irmão que eu sempre quis, a melhor versão que ele poderia ser. Era alguém que eu poderia perdoar, alguém que poderia amar como um irmão de verdade.

O abracei com força e aproveitei um pouco mais daquele sonho, seria um presente justo por enfrentar Ygor, pena que minha história em Porto Izmael não acabaria assim, algumas coisas estavam fora do lugar e pessoas poderosas queriam respostas.


A Sociedade de Porto Izmael (Mistério/Policial/Aventura)Onde histórias criam vida. Descubra agora