Capítulo 19

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A noite mal dormida cobrou seu preço na manhã seguinte, estava exausto e desanimado quando me levantei da cama. Por volta das sete da manhã, encontrei Bertha que preparava o café para meu pai, sentado na mesa da sala, o cumprimentei com um aceno de cabeça e tomamos o desjejum juntos, era hábito do velho homem levantar no início da manhã, nunca vi meu pai se levantar depois das oito da manhã, mesmo quando estava doente ou indisposto.

— Você dormiu bem, Heitor? — Disse enquanto segurava o jornal com a mão direita.

— Claro, como um anjo.

— Não precisa exagerar.

Imagino qual era a expectativa dele ao me colocar no único cômodo que não gostaria de dormir.

— Minha neta está lá em cima? Ela costuma dormir até que horas?

— Vai saber, pai. Ela é uma criança em uma casa que não conhece, deve acordar quando ficar com fome.

Apolo acenou com a cabeça em concordância a minha observação.

— Nunca deixei vocês passarem das...

— ...Oito. Me lembro bem.

— Exceto o pai dela, eu até tentava, mas...

— ...minha mãe não deixava, me recordo também. Vamos esperar, se for necessário, daqui a pouco acordo ela.

Não era minha intenção. Por mim, Vitória poderia dormir até meio-dia se quisesse. A menina acabou de perder a mãe, se ela queria descansar, quem era eu para impedir?

— Você quer dar uma olhada no jornal?

— Não se preocupe, eu acompanho a versão online.

Meu pai torceu o nariz.

— A internet é um mar de bobagens e mentiras...

— Sou assinante do mesmo jornal que você está lendo, pai. É o mesmo jornal em uma versão digital, e a errata saí no mesmo instante e não apenas na edição do dia seguinte.

— Pode ser... mas nada substitui um bom e velho jornal em mãos. Aliás, o caderno de hoje tem uma menção a cidade de Porto Izmael.

— Como é que é?

Imediatamente saquei o celular e comecei a procurar.

— Cadê? Em qual página? Qual é o assunto? Não estou encontrando...

— Cof, cof! — Tossia o vitorioso Apolo destacando a folha de jornal separada em sua mão.

Balancei a cabeça e me rendi ao jornal de papel.

Era uma reportagem sobre os desaparecimentos em Porto Izmael, estava no caderno nacional logicamente, nada desse tipo de informação era destaque no noticiário local que só destacava as belezas e maravilhas de lá.

Não era uma notícia substancial, mas devido às limitações daquela cidade acredito que o jornalista responsável vez um belíssimo trabalho investigativo, na reportagem eram citados nomes de todas as pessoas desaparecidas no último ano, os assassinatos com o pentagrama também foram destaques, inclusive o de meu irmão e sua ex-esposa. Por motivos lógicos, e um bom jornalismo, o jornal não traçou nenhum paralelo e não indicou nenhum suspeito, mas entrevistaram algumas famílias, inclusive a senhora Ruthe, destacou também que o trabalho policial estava "deixando a desejar", ou seja, uma facada na orgulhosa delegada.

Me pergunto se quando procurada, pelos jornalistas, ela tenha dito que era muito ocupada e não poderia dar nenhuma declaração, possivelmente sim, pois nas últimas linhas estava escrito "a delegada, Thábata Moreira Makenzie, recusou-se a dar qualquer declaração a respeito dos desaparecimentos, mas afirmou que existem suspeitos sendo investigados", uma ova, pensei.

Com meu celular em mãos tirei uma foto da página do jornal e enviei para Eleonor, acreditava que qualquer ajuda seria bem-vinda. No mínimo, com toda a exposição nacional que uma matéria assim produzia, nossos implacáveis observadores diminuiriam o ritmo, e minha esposa poderia ter um pouco de tranquilidade em sua investigação.

Passados alguns instantes, recebi uma resposta de Eleonor em mensagem:

" Eu já sabia, mandei anonimamente para o jornal um pouco do material que recolhi em Porto Izmael, parece que eles mandaram uma equipe jornalística para confirmar um ou outro fato, entrevistaram a Ruthe, isso deve ter animado ela novamente. O importante é que agora tenho paz para trabalhar."

Eu não tinha paz. Devia ter desconfiado que existia o dedo de Eleonor nisso tudo, menos de 24 horas e ela já sacudiu a cidade com uma denúncia ao nível nacional. Por mais que estivesse convicta de sua anonimidade, era impossível confirmar que isso não acarretaria alguma forma de retaliação, afinal, não era apenas o ego da delegada que estava em jogo, toda uma casta de pessoas influentes poderia estar envolvida nisso.

Precisava partir logo, se algo acontecesse a Eleonor enquanto eu estivesse na casa do meu velho, não me perdoaria nunca. Poderia não ser o reforço perfeito, mas pelo menos não a deixaria passar por isso sozinha, apesar de os talentos investigativos dela serem infinitamente superiores aos mesmos, eu ainda compensava com alguns talentos que não eram especialidade de Eleonor, como atirar de longas distâncias, algo que desejaria nunca mais ter que fazer.

Precisava ter certeza da boa vontade de meu pai para com sua neta, e então partir, resolvi testá-lo:

— Pai, o que o senhor achou da Vitória?

Ele encurvou o jornal para me olhar:

— O que quer dizer?

— É uma garota fantástica, não? Viu como ela é divertida?

— Sim, é uma boa menina. Apenas precisa de uma disciplina correta, o choro ontem foi um pouco incomodo, não a culpo. É Provável que a mãe a mimava um pouco e...

— Sério? Você está de brincadeira?

— Nunca brincaria com algo tão sério. Você não quer que ela seja como o pai, certo? O correto é podar os defeitos enquanto são crianças, se sua mãe tivesse me deixado colocá-lo no colégio interno, ele nunca teria sido tão irresponsável na vida adulta.

— Oi? Colégio interno? A menina passa uma noite na sua casa e você já sugere mandá-la para uma Gulag infantil?

— Gulag? Deus, Heitor! Quanta dramaticidade. Tem certeza que serviu às forças armadas? Existem certas disciplinas que cabem aos tutores, para que os menores não se desviem da moralidade e civilidade.

— Tenho certeza que a Vitória não vai virar uma criminosa só porque não frequentou uma escola de tempo integral. A menina se assustou um pouco, ela acabou de perder a mãe.

Bertha circulava pela mesa, tentava fazer gestos sutis para que eu não brigasse com meu pai. Ela jamais entraria em conflito com o sisudo patrão.

— E eu entendo perfeitamente, Heitor. Não estou diminuindo a dor dela, apenas penso que você deveria considerar todos os cenários possíveis. Você nunca foi pai, não sabe a responsabilidade que é criar alguém, ainda mais uma menina que já teve uma formação anterior.

Me levantei da mesa, a conversa não poderia evoluir e eu não estava disposto para entrar em uma discussão com meu velho. Uma coisa é discutir com o pai quando você tem vinte anos, outra é debater com seu progenitor quando você já passou da casa dos trinta.

— Vou pegar um sol antes da Vitória acordar, se o Átila chegar você pode avisar que quero falar com ele?

Meu pai sorriu, ele sentia que tinha vencido a discussão, como não sabia qual era a intenção dele, talvez ele realmente tenha ganhado. Já estava cansado de discussões inúteis, primeiro em um sonho e agora no café da manhã, a característica mais marcante da minha família deve ser o conflito.


A Sociedade de Porto Izmael (Mistério/Policial/Aventura)Onde histórias criam vida. Descubra agora