Minha primeira tarde consistiu em desfazer a mala, sim no singular, não tinha a mínima vontade de me demorar mais que o necessário. Minha esposa estava em uma cidade estranha e inóspita, o que me deixava preocupado e desatento.
Bertha fez a gentileza de me levar aos meus aposentos, escolhido por meu pai evidentemente, fiquei com o quarto em que dormia na época em que passara vivendo com minha família, estava exatamente como me recordava: o tapete felpudo, o sofá, a escravinha e claro, a cama em que encontrei Alexandre e Helena juntos.
Não sei se meu pai pediu isso em um ato de vilania ou se Bertha apenas repetiu um hábito antigo, mas a roupa de cama era exatamente a que usávamos na época em que tudo aconteceu. Fiquei alguns momentos pensando no passado, parado na frente da velha cama, até que Bertha se manifestou:
— Desculpa, meu filho. Foi ordem do seu pai, eu sei que você não gosta desse quarto, mas...
— Não, não. Que isso, Bertha. Não ligo pra isso, um quarto é só um quarto.
— Tudo aqui mudou quando você foi embora, Heitor...
Abri um sorriso receptivo para a acalentar a alma de Bertha.
— O que você quer dizer?
— Seus irmãos saíram em seguida, menos o Átila, ele ficou aqui enquanto sua mãe viveu. Só que o clima ficou muito ruim, Alexandre piorou demais na época...
— Me contaram. Ele vivia pra isso...
— Não, não... É verdade que ele sempre aprontou muito, porém foi diferente. Depois que você foi embora, tinha algo estranho nos olhos dele, ele tinha muito ódio. Explodia por qualquer coisa, as brigas entre ele e seu pai eram horríveis...
— Imagino que vocês sofreram muito com ele, né...
Aquela senhora, tão doce e tão forte, abriu um sorriso enquanto esticava o lençol da minha cama. Ela trocava o cobertor branco por um azul, era o jeito dela de deixar o quarto diferente do passado. Um gesto amigável de alguém que realmente se importava com todos nós.
— Uma vez... Bom deixa pra lá! Passado é passado.
— Por favor, Bertha. Você nunca teve segredos para comigo, pode me contar.
Um pouco sem jeito, ela se aproximou para se certificar que meu pai não escutasse.
— Um dia o Alexandre foi preso, parece que estava usando drogas ou algo assim, sua mãe já estava bem doente e seu pai a deixou no hospital para tirar seu irmão da prisão, me lembro que o senhor Apolo e o advogado trouxeram o Alexandre tarde da noite. Quando o advogado foi embora, ele e seu pai tiveram uma discussão terrível, sua mãe não estava aqui para apaziguar, então seu pai jogou várias coisas na cara dele. Seu irmão foi embora daqui só com as roupas do corpo, foi um dia muito triste.
— Eu conheço essa história, Bertha. Depois disso o Átila levou dinheiro pra ele, não demorou muito tempo e minha mãe faleceu...
— Sim, mas teve mais uma coisa no dia em que seu irmão foi expulso daqui. Durante toda aquela cena, ele disse que odiava seu pai e que o senhor Apolo só amava e se orgulhava de você. De você Heitor! Eu entendi naquela época, seu irmão não te odiava, ele queria ser como você, Heitor. E por não conseguir, ele fazia todas as aquelas coisas.
Era bem provável que Bertha estivesse errada, ela só sabia dos "erros" cometidos por meu irmão por alto, se ela soubesse o tipo de coisa que ele fazia, entenderia que meu irmão ultrapassou a barreira de má pessoa, quando morreu já estava no limite da criminalidade.
Contudo, nossa governanta amava minha mãe como uma irmã, e minha mãe amava Alexandre com todas as forças de sua amargurada alma de progenitora. Então, era mais fácil para Bertha acreditar que tudo que Alexandre fazia, era só por ciúme e não uma tendenciosa falta de caráter.
Dei um abraço apertado nela, penso que era o máximo que podia fazer naquele momento. Antes que ela pudesse prosseguir com sua análise da vida de meu irmão, minha sobrinha invadiu o quarto gritando:
— Bertha! Bertha! Vem brincar comigo!
— Estava com saudades dessa energia nessa casa! Claro, querida! Eu vou sim, vamos lá desfazer sua mala.
As duas saíram felizes enquanto ajeitava minhas coisas no guarda-roupa.
O céu ficou escuro rapidamente, ainda era relativamente cedo quando Vitória e eu paramos de brincar de desenhar, a menina adorava rabiscar e colorir. Bertha nos chamou e nos posicionamos para jantar na ampla e requintada mesa, como era de se esperar, meu pai não deu as caras no lugar, se manteve trancado no velho escritório.
Naquela noite apenas nós três jantaríamos na velha residência, ou foi o que pensei no momento, era o suficiente para Vitória que devorava a comida, habilmente preparada por Bertha.
— Você sabe se o Átila vai passar aqui amanhã? Ele não me respondeu no celular hoje.
— Sim, ele vai sim. Toda semana ele vem aqui para trazer os papéis do seu pai...
— Sim, os dados contábeis, né? Até hoje ele faz isso para o meu velho... isso que é filho.
— Isso que é filho! — Repetiu Vitória com a boca cheia de comida.
Todos demos risada com aquele reflexo da juventude de minha sobrinha.
— Porém, eu acho que é desculpa, sabe? Suponho que ele faz isso pra ver como seu pai está.
Se Átila não era o favorito de meu pai, isso tornava meu pai um tolo. O justo e carinhoso Átila, talvez o único membro masculino dessa família que não passou raiva com Alexandre, também pudera! Átila era como um campo neutro nas brigas da família: não julgava ninguém, não apontava defeitos, apenas escutava e buscava apaziguar as brigas.
— Provavelmente sim, Bertha. Ele sabe como meu velho é orgulhoso...
— Ele é orgulhoso!— Repetiu Vitória.
— Mas isso me deixa tranquilo, enquanto o Átila permanecer por perto, eu sei que meu pai está seguro, é bom saber que mais alguém cuida dele...
Meu discurso foi cortado, justamente pela figura do velho e sisudo, senhor Apolo.
— E você acha que eu preciso de babá?
Pego de surpresa, fiquei encabulado. Bertha me observou, esperava que como nos velhos tempos eu me desculpasse e que tudo aquilo se seguisse de uma noite quieta e constrangedora. Todavia, meu casamento com Eleonor me tornou um pouco mais apto a lidar com constrangimento, se ficasse encabulado toda vez que Eleonor ofendia alguém eu seria obrigado a me esconder em uma caverna.
— Ora, pai. Jamais diria isso, o senhor não é criança. Creio que o nome correto desse profissional é cuidador de idosos.
Minha técnica funcionou tão bem que minha esposa sentiria orgulho, Bertha gargalhou, Vitória deu risada, e para meu espanto, meu velho me presenteou com um sorriso tão espontâneo que quase não acreditei.
Ele puxou uma cadeira, pegou um prato e se serviu.
— Nem acredito que o senhor deixou aquele escritório.
— Senti o cheiro da comida, sou como essa pequena aqui. — Disse o velho senhor, com a mão no ombro de Vitória.— Não resisto a comida da Bertha
Talvez o aristocrata velho ainda tivesse um ou dois truques que eu não conhecia.
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A Sociedade de Porto Izmael (Mistério/Policial/Aventura)
Mistério / SuspenseLIVRO COMPLETO O casal de investigadores, Eleonor e Heitor, recebem a noticia do suicídio de Alexandre, o irmão de Heitor, e resolvem dar o último adeus ao caçula da família Garcia Torres, contudo o casal descobre o passado sombrio do rapaz e os in...