Capítulo 35

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Quando você força demais seu corpo — e entenda forçar como apanhar e ser torturado —, ele simplesmente apaga como forma de te proteger. Não saberia dizer por quanto tempo apaguei e os acontecimentos desencadeados após a reunião.

Tudo que posso fazer é deduzir que aquelas pessoas poderosas encerraram a sombria reunião com alguma bobagem em latim. O latim não é apenas lindo para passar a ideia de que uma pessoa é eloquente e sofisticada, o velho idioma também tem sua aplicação no sentido de dominar e assustar os ingênuos.

Possivelmente me arrastaram para dentro de um veículo, logicamente sem aquele "roupão" que me obrigaram a usar, e em alguns minutos corremos ao local onde Ygor residiu durante sua vida.

Acordei atordoado com um safanão, retiraram um capuz preto e a luz ofuscou minha visão por uns instantes. Estava ajoelhado naquele solo familiar e uma fita cobria minha boca. Estava com a mesma calça do mangue com uma camisa branca surrada, demorei alguns instantes para entender a situação.

Estávamos na frente da casa queimada de Ygor, tudo virara pó naquele lugar, com exceção de alguns ferros retorcidos, possivelmente os únicos sobreviventes da queimada. Me perguntava se os desgraçados responsáveis por isso ao menos mataram as mulheres presas no porão antes de atear fogo, a vida de outras pessoas não parecia significar muito para a Ordem de Izmael.

Do lado daquele carro vermelho: Catarina, seus dois homens e eu. Na minha frente: Eleonor com as mesmas roupas da última vez que nos encontramos e seu chapéu azul.

— Viu? Ele está vivo. Agora podemos negociar?

Eleonor me olhou na face e com meus olhos tentei alertá-la da eminente armadilha que a aguardava, em breve um dos homens de Ricardo estaria bem atrás dela para matá-la. Não sei se ela entendeu meu sinal, possivelmente sim, mas ela não poderia demonstrar.

— Devo admitir, que pela ligação, imaginava alguém diferente. Esse chapéu azul não passa a seriedade necessária para uma pessoa que desafia uma cidade inteira. — Prosseguiu Catarina.

Se me lembro bem, certa vez tive uma palestra no exército, com um especialista britânico em troca de reféns e negociações em conflitos armados. A primeira regra ensinada pelo homem era não irritar de forma alguma o sequestrador, é importante que ele se sinta calmo e no controle da situação.

— É mesmo? Que bom que estamos sendo sinceras porque eu estava olhando pra você e me perguntando: que pessoa estúpida usaria um salto louboutin em um mangue? — Acredito que neste momento minhas chances de sobreviver tenham caído pela metade.

Os dois guarda-costas de Catarina estavam tensos, obviamente a vontade de ambos era matar Eleonor e depois me dar um tiro na cabeça, acabando com a situação. Contudo, a líder da seita parecia interessada em conversar com minha esposa desde o telefonema inesperado que recebera.

— Seja como for, estou aqui, então me diga Eleonor: O que você tem para me oferecer em troca do seu marido? O que você pode me entregar que garanta que aquelas fotos não foram compartilhadas?

— Absolutamente nada. Não vim oferecer uma troca por fotos, na verdade, estou aqui para combinar os termos de sua rendição.

Catarina apenas sorriu e fez um gesto para o homem que estava do meu lado, ele prontamente sacou a arma e apontou para minha cabeça.

— Você tem certeza que não tem nada?

— Não vou tentar te enganar, aqueles arquivos já foram encaminhados para minha irmã. Vocês estão sendo investigados há muito tempo. — Pontuou Eleonor.

— Se estamos sendo investigados pela justiça federal, que diferença faz as fotos que seu marido tirou na casa de Ygor? Sabe, para uma pessoa esperta você está desperdiçando um tempo precioso.

Eleonor levou a mão no rosto, seu semblante parecia cansado, confiante, porém refletia a exaustão dos últimos dias.

— Julgo que você não conhece muito bem as pessoas, Catarina. Tem certas coisas que assistimos nos jornais e pensamos "é terrível, mas não tem nada relacionado comigo". É o caso do tráfico de drogas que acontecia no porto, contudo prender mulheres em calabouços sinistros e exportá-las para prostituição no exterior é diferente. Isso revolta as pessoas, isso faz barulho e atrai olhares. A justiça não pode ignorar, a mídia também não pode ignorar.

Catarina mudou o semblante, estava séria e escutava cada palavra.

— As fotos daquelas mulheres foram analisadas e identificadas, a maior parte delas estavam sendo procuradas por suas famílias e amigos, eu até mesmo conheço a mãe de uma delas, uma senhora bem insistente por sinal. Então, aquilo se tornou o limite e uma operação foi desencadeada e vai acontecer hoje. O amigo de vocês, Alecxey já foi preso e agora mesmo toda a mercadoria ilegal no porto deve estar em apreensão. Traficante estrangeiro preso mais depoimento mais provas de crimes é igual a...

— Não é a primeira vez que fazem isso...

— Você deve estar falando da apreensão de drogas que aconteceu alguns anos atrás. Bem, agora é diferente. Eles têm seu comprador preso, e além de drogas me contaram que vocês tentariam mandar mais de vinte mulheres em um cargueiro hoje.

Catarina não conteve a surpresa com aquela traição, imagino que ela nunca teria imaginado que Ricardo e Tobias seriam tão tolos ao ponto de exportar mulheres no meio de uma situação tão inóspita. Mas os dois homens apenas queriam se livrar de possíveis testemunhas e agradar Alecxey.

— Pela sua cara, é óbvio que seus colegas de seita estavam escondendo algo de você, mas tudo isso tem um lado positivo.

— O que quer dizer?

— Ora, você é rica e poderosa como seus amigos e quando o estado resolve agir contra pessoas assim ele nunca pega todos, apenas alguns para servir de exemplo, entende? Ninguém quer levar uma cidade ao caos. Pelo que entendi você só precisa colaborar: começaria não matando um ex-militar, condecorado em missões de paz, e sua esposa com contatos federais. Em seguida, deixe-me ver... que tal entregar Ricardo, o senador Tobias e o contador?

— Não conte com isso. Boris nunca será preso.

Fazia todo sentido, o contador sádico era dono de todos os segredos bancários, não apenas da cúpula principal como provavelmente de toda a Ordem de Izmael, qualquer ameaça de prisão e eles o matariam.

— Se vocês preferem assim, tudo bem Catarina. O que me diz? Neste momento, o porto está sendo interditado pela justiça de verdade e não pela polícia de fachada daqui, aliás, a delegada de vocês também será presa. Agora preciso saber, você vai colaborar e soltar o Heitor?

Quando meu nome foi dito Catarina sorriu, até o momento ela parecia encurralada, mas aquilo deu a ela um estranho ar confiante.

— Interessante. — Suspirou a líder da Ordem— Fui criada pelo meu pai, ele não era rico como as famílias da Ordem, mas ele era muito sábio. Era um tipo de sabedoria que as pessoas simples adquirem no sofrimento e na desesperança de uma vida difícil.

Eleonor intrigada levantou a sobrancelha como se perguntasse o que aquele pequeno monologo significava e onde ela queria chegar com tudo aquilo.

— Uma vez ele me disse, e nunca esqueci, que as mentiras mais perigosas são aquelas que possuem uma verdade no meio. Acredito que sim, meus colegas burros serão presos ainda hoje. Isso não é muito, essa cidade tem outras pessoas influentes para substituí-los.

— E qual foi minha mentira?

— Sua mentira, minha cara, é simples. Você não tem tanto apoio assim, quando matar você e seu marido, ninguém vai ligar, até porque nunca acharão seus corpos.

Enquanto o homem de terno destravava sua arma, o rosto de Eleonor refletia a confiança de alguém que já esperava por essa ameaça.

— Agora sim, Catarina. Finalmente podemos barganhar de verdade e posso te oferecer algo que te interessa, algo que é muito valioso pra você.



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Muito obrigado!!!

Aquele abraço e uma ótima semana!!!

A Sociedade de Porto Izmael (Mistério/Policial/Aventura)Onde histórias criam vida. Descubra agora