Capítulo 62 - O trono da Escuridão

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Todos estes anos Augustos Widmore cuidara dele. Todos estes anos, sempre que a noite caía e todos haviam ido se deitar, o frei que ousara amar e fora punido por isso, descia ali, nas entranhas da terra para cuidar do filho que tentaram assassinar, deixando para trás, para que a caverna decidisse seu destino.

Nunca saberemos como o frei Corcunda conseguiu encontrá-lo, nunca compreenderemos como Widmore pôde guardar para si aquele segredo por tanto tempo, porém, mesmo sucumbindo à loucura, o velho das hortas não se esquecera de sua criança, e dela cuidara até o último momento, até que as forças já não lhe permitiam descer, forçando-o a cumprir seu último pedido, o de enviar cartas pela Europa, convocando ao monastério aqueles que precisavam retornar para o julgamento. Ele não se arrependia do que havia feito, pois eles não se arrependeram de todo o mal que causaram.

Dan aproximou-se da profundidade oculta da caverna, desviando-se com cuidado das grossas raízes que se espalhavam pelo chão. Conforme passava, percebia que alguns roedores escondiam-se por todos os cantos, e compreendeu porque era impossível livrar-se deles, já que aquilo era semelhante a um grande ninho.

Beterrabas o seguia, estivera ali desde que Widmore sussurrara o segredo, mas não tinha coragem suficiente para encarar a verdade face a face. Via Charles apenas como o espectro juvenil que se apresentava na entrada da caverna, e ali cumpria suas ordens, temendo ser ferido. Alimentos, geralmente era isso o que Charles pedia. Apenas alimentos, por tempo suficiente até tudo ter terminado.

O teto naquela região também era feito pelo emaranhado de raízes e pedras pontiagudas. Observando-o, Dan engolia em seco. Então, parou quando viu sobre algumas rochas restos de velas derretidas. Muitas delas, milhares, acendidas por anos, para iluminar o caminho perdido no escuro. Foi quando a voz decadente deixou o breu:

— Então você veio — o ruído propagou no vazio. Não juvenil, ou feminino, mas desta vez como realmente era, o de um homem muito abatido, de cabelos longos e sujos, perfil esquelético, cuja face estava oculta. — Agora que você sabe de tudo — disse, e Dan não sabia como reagir — Agora que entende os meus motivos, percebe que não se trata de ter ou não perdido a bondade, mas da necessidade de justiça, e colocar um ponto final às crueldades deste lugar.

— Charles... Eu...

— Não. É melhor que não fale Dan Mason, na verdade você não entenderia, todavia, também não deixa de tem alguma razão. Não é justo que inocentes paguem por pecadores, nem que o amor seja ignorado apenas porque comigo teve um fim trágico.

"Eu deixei que o ódio me cegasse, e não vi que todo este tempo, bem aqui, diante de mim estava o único amor que realmente importava. O amor de quem voltava diariamente para fazer-me companhia, mesmo com suas limitações. O amor de quem cuidava de minhas feridas até que as forças lhe foram drenadas. O amor que não julga, não escolhe por aparências, talentos ou escolhas, mas sim é incondicional, e se prova nas circunstâncias mais obscuras".

— Mas Charles, ouça-me — Ele o interrompeu, ainda temeroso. Sentia que havia algo mais ali, algo os observando, sussurrando em confidência. — Charles, você ainda pode ficar bem. Nós podemos ajudá-lo.

— Não — o homem debilitado ofegou — Para mim não há saída, não mais — estava cansado, sua aparência cadavérica era espantosa — Aquele com quem me importo está deixando esta vida, e talvez por ele, mesmo que sobrevivendo pela vingança, foi por quem me mantive aqui. Somente por ele, o único que realmente importou.

— Charles... por favor, deixe-nos ajudá-lo. Eu e Beterrabas podemos levá-lo para cima e...

— Você é insistente garoto — virou-se e por um momento Dan sentiu-se nauseado ao ver um lado de sua face sob a luz. Ela estava destruída, podia ver seus dentes, ossos e musculatura.

Então Dan olhou ao redor, e percebeu as sombras nas paredes. Elas tinham formas estranhas e sussurravam entre si, e às costas, Beterrabas tremia fazendo preces a Deus pela proteção.

Dan sentiu o coração apertar, e fixando Beterrabas, enfim entendeu. Em busca de vingança Charles Widmore vendera sua alma.

— Não tenha pena de mim rapaz — ele disse, roubando sua atenção — tenha pena daqueles que me conduziram a isto — engoliu em seco, então tornou a se ajeitar, as raízes o envolvendo — E agora vá embora. Apenas por sua coragem eu não castigarei os inocentes, mas também não facilitarei para os culpados. Você tem pouco tempo para levar consigo aqueles que ama, e convencer aos que se apegaram a estas paredes de que os tempos de Saint-Michel chegaram ao fim. Dentro de alguns minutos o sol vai nascer, e aqueles que estiverem no monastério permanecerão nele para sempre.

Dan gaguejou, todavia, não podia sair dali sem a certeza do que fora buscar.

— Mas, e quanto a Marlon Gayler? Eu não posso simplesmente...

— Ele ficará bem — o homem debilitado disse, respirando com dificuldade — Você o encontrará no quarto, e ele estará pronto para partir. Mas agora vá, eu não darei uma segunda chance, e não terei piedade uma segunda vez.

Curvando a cabeça, eles deram de costas respeitosamente, e assim, Dan retomou os passos, seguindo Beterrabas para a entrada da caverna. Nas laterais, as raízes moviam-se estranhamente em direção ao teto, como cobras atendendo a um chamado, e tropeçando antes de alcançar os degraus, Dan observou uma última vez o lago assombroso, no qual tivera o encontro que nunca sairia de sua cabeça.

***

Ela estava ali. Sentada ao lado de seu leito, com os lindos olhos azuis fitando-o fixamente. Ela estava ali, e desde o dia em que já não conseguia andar, fazia-lhe companhia, e ele podia sentir seu perfume no ar.

— Widmore? — A voz então sussurrou, e ele manteve os olhos fixos na feição dela, atento a seu belo rosto. Tão perfeito, tão amável — Frei Widmore, o senhor está me ouvindo?

Não. Ele já não sabia se estava ouvindo a voz trêmula que vinha do homem que o assistia, ou aos sussurros dela, cantando uma canção de ninar. Tudo o que queria era permanecer assim, somente com ela. Era bom sentir o seu cheiro de primavera, desejando voltar à ponte sobre o lago, onde se conheceram.

— Frei Widmore? Por Deus — sentiu-se ser chacoalhado, e aquele que ficava ao lado da cama estava agitado. Mas, para quê agitação se estavam em tão boa companhia? — Frei Widmore?

A voz dele estava ficando distante. O quarto estava ficando mais claro, e sim... agora estava outra vez na ponte, e ela parada ao seu lado, esboçando um tímido sorriso.

Passarinhos cantavam, o rio corria lentamente abaixo deles, refletindo os raios de sol. Então ela se aproximou tocando sua pele, e ele fixou seus lábios rosados.

— É hora de irmos embora meu amor, seu trabalho por aqui terminou — ele retribuiu ao toque, e fixando por um instante a aparência refletida em seus olhos, percebeu que o tempo nunca passara para os dois. — É hora de descansar, você foi um bom pai para a criança, mas esta noite, o trabalho terminou.

No quarto mal iluminado o rapaz massageava o peito do idoso insistentemente, mas todos os seus esforços já não adiantavam. Ele ergueu-se engolindo em seco, olhou ao redor, e quando tornou ao homem, assustou-se dando um passo em direção à cômoda.

A silhueta de um garoto pálido aguardava ali, sentado aos pés de Widmore, no local para onde este sempre olhava em seus momentos febris. Porém o rapaz não permaneceu no campo de visão por muito tempo, já que sob o bruxelar da vela, desapareceu.

Talvez houvesse sido alucinação devido ao cansaço? Nunca saberia. O fato é que o que acontecera naqueles últimos instantes da noite lhe fora bastante real: Augustos Widmore, o frei que no passado fora o braço direito do diretor, falecera tranquilo e em paz, entre os cobertores de sua cama quente.

O Exorcismo de Marlon Gayler [Romance Gay]Onde histórias criam vida. Descubra agora