As imagens ainda o perturbavam: a comoção, os murmúrios, a maldade na ação. Mantendo-se parado rente à mesinha que ficava à lateral da lareira, Ratazanas tomava um novo gole, observando o trepidar do fogo enquanto tentava afastar as memórias.
Ele devia ter dado ouvidos, Ele devia ter usado do bom senso e saber que o padre nunca admitiria tal escândalo sob seu teto, não quando o bispo de Palência estava se aproximando. E agora, passado tantos anos, restava apenas as memórias, lembranças que por tempos tentou esquecer, rostos que chegou a apagar, mas que retornaram com a neve.
— Frei? — Assustou-se quando a mão pequena tocou seu ombro e de supetão se virou, por pouco não deixando o copo cair no chão. Ela era tão parecida com a garota. Ela era a garota? Oh, não... não, aquela era Margô, sobrinha de madame Beauvoir. Não a filha, não Flor de Lis. Pobre Flor de Lis.
— Garota Margô? — gaguejou buscando o melhor sorriso, tentando disfarçar o mau jeito. Às vezes tinha vergonha de sorrir na frente dela, era tão linda e seus dentes tão branquinhos — Eu... perdoe-me, estava desatento.
— Perdoe-me o senhor. Eu não queria atrapalhar seja lá o que estivesse fazendo.
Ele sorriu. Então voltou a servir-se de álcool.
— Eu estava apenas com os pensamentos distantes. Há algum problema?
— Queria avisar que o garoto Daniel levou a última caixa. Ele está terminando de ajeitar a lona na carroceria da caminhonete — fixou sua feição, os olhos dele estavam pesados, e outra vez levava o álcool à boca. Era preocupante.
— Ah, sim. O orelhudo tem braços fortes. Ainda bem que apareceu para ajudar com a mudança, do contrário, teríamos que pagar alguém para isso.
Ela sorriu estralando os dedos. Outra vez os olhos fixos ao copinho que o velho levava aos lábios.
— O senhor acha que teremos condições de partir pela manhã? Não acha melhor descansarmos por mais um dia?
Sua real preocupação não era a neve, mas sim o estado alcoólico em que o homem se encontrava.
— Ah, claro que não. A nevasca sempre dá uma trégua nas primeiras horas do amanhecer. Acredito que conseguiremos alcançar a rodovia sem grandes problemas.
Ela não questionou, apenas sentia o cheiro forte. Foi quando a porta tornou a ser aberta, a lufada de ar frio entrou na sala, e logo após Dan Mason, limpando os flocos de neve que grudaram às roupas. O rapaz estava com as bochechas coradas, e Margô aproximou-se ajudando com o casaco.
— Está tudo bem com você? Lá fora parece tão gelado — retrucou olhando outra vez para o frei, então tornou a ele — Venha, aproxime-se da lareira, acredito que ficar um momento perto do fogo será útil, enquanto isso vou à cozinha buscar algo quente para tomarmos.
Dan apenas respirou fundo e ajeitou-se agradecendo-a. Massageava as mãos para aquecê-las e virou-se um instante observando a feição do velho cujos olhos estavam fixos ao fogo. Ratazanas era sem dúvida a coisa mais feia que já vira, e sua barba mal aparada parecia ter pulgas. O homem moveu os lábios e ele ouviu o murmúrio.
— A saúde dela nunca foi boa — Dan manteve silêncio sem compreender. O cheiro de álcool estava forte — Flor de Lis — o velho olhou rapidamente para ele com a visão entorpecida, então tornou ao fogo — Lembro-me da notícia chegando ao monastério. Madame Beauvoir mandara uma mensagem pedindo para que viessem o quanto antes, a garota havia piorado.
Era efeito do álcool, Dan não tinha dúvidas. Se Ratazanas começara a falar mais que o costumeiro, era por consequência das doses que tomara. Parecia disposto a contar o que sabia, e foram interrompidos pelo ruído de Margô retornando da cozinha.
— Falavam sobre ela? Digo, sobre minha prima? — Questionou entregando a Dan a caneca com chocolate quente, e Ratazanas a observou um instante.
— Sua prima? — retrucou após uma pausa, parecendo tentar recordar-se de onde estava — Ah, sim, sua prima, Flor de Lis. Ela era bastante parecida com você. Uma boa garota, de boa índole, diferente das demais — umedeceu os lábios e deu de costas — Era atenciosa, preocupava-se com o próximo, não julgava ninguém. Uma moça apaixonante. — caminhou à mesinha de bebidas e Margô trocou olhares com Dan, demonstrando estar visivelmente desconfortável com a bebedeira do frei. Ratazanas prosseguiu: — Deve ter sido por isso que ele se apaixonou à primeira vista. Não pela beleza dela, mas pelas qualidades que tinha. — encheu o copinho e capengou até a poltrona, onde se jogou.
Dan trocou olhares com Margô. O que era falado pelo velho lhe parecia confuso, mas a garota esclareceu a quê se referia:
— Ele fala sobre Widmore — explicou com a voz doce, fazendo-o voltar a observar o homem — Eu, bem... Como nada havia a fazer nas noites quietas, ouvir os sussurros febris de minha tia era comum, este era um nome muito mencionado por ela.
— Augustos Widmore — O velho deu um sorriso e completou do outro lado — Madame Beauvoir o odiava, ele sabia, mas não se importava. Era um tolo apaixonado. Os dois, ele e a garota.
Então Dan olhou um momento para o fogo, os pensamentos agitados, um enorme quebra-cabeças que fê-lo o interromper.
— Espere um minuto — aproximou-se enfiando a mão no bolso — Augustos Widmore? Você se refere a Augustos Widmore, o frei corcunda do monastério?
— Corcunda? — Ratazanas estalou os lábios, tomando o restante da bebida enquanto observava o garoto lendo outra vez a inscrição no cantinho da fotografia de Flor de Lis. Dan havia retirado a imagem de dentro da moldura, descartando o objeto de madeira — Bem, ele não era tão corcunda à época.
Margô os observava, os olhos fixos em Dan, que se aproximou do velho.
— A.W? Então, este é o dono das iniciais? — mostrou a imagem, mas Ratazanas estava tonto e não podia distingui-la — Augustos Widmore? Foi ele quem assinou a gravura? Ele era o amante da garota? — olhou para Margô, que tomando a imagem de suas mãos, leu uma vez mais a misteriosa frase gravada à lateral: "Amor Eterno. A.W, Primavera de 1995".
— Mas, como isto é possível? — o garoto umedeceu os lábios — Digo, Widmore é um frei. O padre o puniria.
— E o padre o puniu — o velho virou-se a fixá-lo com o olhar trêmulo. Parecia bastante cansado. — Por que acha que tem a corcunda? Como acha que a conseguiu? Trabalhando?
— Ele estava sob juramento de castidade...
— Ele traiu a confiança do padre — Ratazanas retrucou, fazendo Dan menear a cabeça — O maldito padre confiava nele com a própria vida. Widmore era como um filho, entende? E quando madame Beauvoir os entregou, o padre deu-lhe uma punição exemplar, que de tão dura, ferira um dos nervos da coluna.
— Céus! — Margô exclamou colocando a mão sobre a boca. Agora, sentando-se junto a Dan, não pôde deixar de questionar — O senhor tem certeza disso frei? — devolveu a gravura ao rapaz, que outra vez a analisou — Ouvi vários sussurros de minha tia, e... ela não parecia querer o mal dos dois, pelo contrário...
— Desculpe minha rispidez jovenzinha, mas, você não me parece ter conhecido sua tia muito bem — resmungou, olhando novamente para as chamas — Não sei o que se passava na cabeça de Madame Beauvoir. Talvez não gostasse de religiosos, ou o problema fosse Widmore, o fato é que ela foi quem os denunciou.
Margô cedeu os lábios para dizer algo mais, porém Ratazanas falava de forma tão convicta que Dan a interrompera limpando a garganta.
— Isto não faz sentido algum. Se fosse verdade, eu teria ouvido algo.
— E não ouviu? — Ratazanas zombou, surpreso com aquilo. Observando o garoto levantar-se, a caminhar para o outro lado do sofá — Afinal, você esteve mesmo em Saint-Michel garoto? Por onde anda Lúcios? Cansou de rivalizar seu superior?
— Lúcios? — Dan indagou, olhando rapidamente para Margô. Então uma imagem surgiu na mente — Fala do frei Jubilado? O que ele tem a ver com isto?
— O que tem a ver com isto? — Ratazanasgargalhou alto, voltando a se recompor — Absolutamente tudo meu rapaz. Por quetudo desandou quando Lúcios descobriu o ponto fraco do padre-diretor — olhounovamente para o fogo, dessa vez com a expressão diferente. — E se o pontofraco do padre tinha ligação direta com seu braço direito, esta era a chanceque Lúcios tinha de enfim removê-lo do cargo.
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O Exorcismo de Marlon Gayler [Romance Gay]
Roman d'amour"Internado contra a vontade em um colégio religioso liderado por freis, Marlon Gayler precisará unir-se a Dan Mason se quiser fugir. Dan é um rapaz igualmente problemático, arrogante e envolto por mistérios. É no curso do plano de fuga que um sentim...