[LIVRO DOIS] Interlúdio "A chegada da escuridão"

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Chovia. A água torrencial escorria pelas abas do chapelão escuro e se precipitava pelo lamaçal sob o trotar do cavalo. A capa de borracha que protegia o corpo do homem, protegia também o animal sob suas pernas, que vez por outra se assustava com os trovões que ribombavam no céu. Às costas, um veículo os acompanhava, desviando dos buracos, conduzindo em seu interior o alto clérigo e seu motorista, que atentos, observavam o passar das árvores margeando a estrada sem iluminação.

O cavaleiro não queria ter ficado longe por tanto tempo, as coisas estavam bastante confusas sobre a colina e sentia que algo estava para acontecer. Neste momento o que mais desejava era chegar logo, ir o mais rápido que podia, trotar a toda velocidade, porém as ordens foram claras quanto a conduzir o importante bispo com toda segurança.

A água do céu persistia a cair, como se anjos a estivessem pranteando. A recordação dos sussurros voltavam a todo momento, e ele sentia o peito sufocar.

E se houvesse verdade naquilo?

E se realmente o que diziam houvesse acontecido?

Ele engoliu em seco, olhando para trás. Meneou a cabeça tentando afastar as divagações, conferindo se os visitantes estavam em segurança, e então tornou para frente, respirando com dificuldade.

Quando um novo trovão ribombou, voltou os olhos à escuridão e viu os portões escuros projetados entre a mata. O coração acelerou e tornou a olhar para trás, observando o menear positivo da cabeça do motorista, autorizando de longe que ele seguisse adiante, e respirando fundo, assim o cavaleiro o fez.

O cavalo acelerou, ele o viu perpassar os portões como uma flecha, e fez a volta ao redor do pátio enlameado, descendo apressado sem sequer conduzi-lo ao estábulo.

Retirando o chapelão, subiu pelo caminho de pedras desniveladas e reparando no aglomerado silencioso que o fitava parado à porta, travou por um instante.

O coração pulsava aflito, um brilho diferente cintilou no olhar e ele teve certeza de que algo havia acontecido.

Trêmulo, o corcunda mancou em direção à escadinha de acesso, e sem retirar as botas, lançou-se entre eles, empurrando-os para um lado e outro, até sair de frente para o hall, observando o padre-diretor parado ao centro da escadaria, como se fazendo preces a Deus diante do vitral sagrado.

O homem então engoliu em seco, percebendo vestes negras e olhos anuviados.

— Onde ele está? — disse observando o superior virar-se a fitá-lo, e diante dos olhos pesarosos, o desespero invadiu seu interior — Em nome de Deus padre, onde ele está? Onde está? — Implorou por notícias com as lágrimas a rolar, percebendo somente agora que os demais também trajavam vestes escuras, e nada diziam enquanto o observavam com olhar penoso.

O nó na garganta apertara mais forte e o coração palpitara em extrema angústia. A corcunda doera como se o peso do mundo de repente fosse colocado sobre ela, e ele cedeu ao chão.

— Diga-me onde ele está, diga-me, diga-me...

Lançou-se aos degraus, ajoelhando-se a seus pés. O padre estava sem reações, não sabia o que fazer, e apenas curvando-se piedosamente sentou-se a abraçá-lo, recebendo seus soluços de angústia.

Naquele momento o pobre frei entendeu, não havia volta. Naquele momento ele entendeu que nada mais poderia fazer.

Oh.

Sob um soluço agitado o velho despertou na escuridão do aposento silencioso. Os olhos baços e trêmulos fixaram a vela por um instante, e sentindo dores em todo o corpo, ele engoliu em seco, anestesiado pela sensação febril.

Já estava oscilando há alguns dias, e por estar delirando, não sabia se estava de volta ao monastério, ou tendo algum pesadelo com o seu passado. Sabia apenas que lá fora o sino badalava descompassado, como naquela noite, badalos de funeral. Havia gruído de corvos assustados, como naquela noite, e ele respirou fundo percebendo enfim que não estava sozinho.

Voltou os olhos para os pés da cama, e percebeu que era observado já há algum tempo, olhos fixos em sua tormenta. A princípio pensou tratar-se do frei designado para auxilia-lo em sua enfermidade, mas conforme a visão tomava foco, percebera que não, que na realidade era um rapaz mais jovem, mais novo que o frei das hortas.

A cabeça doía, o cheiro da chuva e de pinheiros vinha ao nariz, e sentia-se trêmulo. Ao tentar dizer algo, imediatamente ouviu a voz que despertou cada pequena ligação nervosa de seu corpo, deixando-o arrepiado:

"Descanse esta noite velho — ela dizia — Descanse, sua hora não chegou".

Era ele? Não! Não "ele" propriamente dito, não aquele garotinho alegre e gentil que vira crescer. Tratava-se apenas do espectro maligno do que fora um dia, o espectro que eles criaram. Em sua voz não havia doçura, e por mais estranho que pudesse parecer ele estava satisfeito por isso. Soava como navalhas frias, e ainda assim não o condenava.

Ele sabia que no fundo a criança precisava fazer aquilo, sabia que aguardara por este momento tempo demais. Sentiu medo por um instante, mas desejou que não parasse, que prosseguisse em destruir tudo, colocasse fim àquela mentira.

Agora, com a respiração falha e delírios febris, novas imagens formavam-se diante dos olhos, novos odores e sensações. Ele já não estava preso às paredes escuras do velho monastério, mas sim observando uma linda mulher esperando sua chegada, sorridente às margens de uma ponte de madeira.

Ela o fitou quando ele a viu, e sob a radiante luz do sol que refletia na água, ergueu o fino pano que cobria o seio desnudo, e revelou a silhueta pequena e franzina que trazia entre os braços.

Tão inocente e dependente ele fora um dia, tãodiferente de tudo aquilo em que se tornou.

O Exorcismo de Marlon Gayler [Romance Gay]Onde histórias criam vida. Descubra agora