Capítulo 42 - Sem Voz

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Monastério Saint-Michel. Verão de 1980.

— Você desonrou a ordem, da forma mais imoral que podíamos imaginar. Como pôde? Como pôde trair a confiança que lhe tive todos estes anos?

— Perdoe-me padre, não foi minha intenção, quando percebi já havia acontecido. Eu... a amei, como um homem ama uma mulher.

— O amor do homem pela mulher foi a causa de nossa queda. Por amar, Adão confiou nas boas intenções de Eva e comeu do fruto proibido. Por amar, Adão condenou a humanidade a padecer sob o julgo do pecado.

Um barulho de punição ressonou e pôde ser ouvido do outro lado da porta. Ali, parado ao centro do corredor, um frei mantinha-se sério, com a postura rígida a impedir o acesso à diretoria. Ele ouvia o diálogo lamurioso, mas estava em Saint-Michel para seguir ordens sem contestar, e era isso que fazia, cumprir o ordenamento que lhe fora dado, sempre com discrição.

— Perdoe-me padre, mas, eu não posso negar meus sentimentos.

— Não — o velho prosseguiu a vociferar, irritado, as mãos trêmulas. Lá fora escurecia, e a sombra turva começava a ocultar a floresta — Não diga que aquilo foi amor. Ela era uma...

— Padre, por Deus. Ela não era como as demais.

— Se não fosse como as demais teria agido como uma mulher cristã, abstendo-se de seduzir servos do Senhor, dedicados a seu serviço.

Outro zunido de chicote ecoou, e o frei parado na entrada do corredor mantinha-se impassível. Devia ser doloroso, mas certamente dor maior era a da consciência do condenado.

Como ele pôde trair a todos? Como ele pôde trair a confiança do diretor? Eles eram como pai e filho.

— Você não irá vê-la outra vez Widmore, está entendendo? — ouviu de longe o mais velho ordenar, desferindo novos golpes raivosos. Suas mãos eram pesadas, deviam suar contra o chicote, e os soluços do homem que um dia fora seu representante ecoava de forma angustiante. — A partir de hoje eu o proibido de deixar a colina, está entendendo? Seu confinamento será contínuo, deve voltar ao prédio sempre que anoitecer, e se eu souber que burlou as ordens, juro por Deus que o mando prender nas masmorras, e lá será sua morada.

Então o frei viu a porta ser aberta, e ajeitando o hábito, virou-se a encarar a forma curva que deixou a sala manquejando e com o rosto completamente avermelhado por lágrimas. Viu que estava ajeitando o hábito que grudava à pele marcada, e por um instante pensou em auxiliá-lo para que não despencasse ali, todavia, a silhueta do padre surgira em seguida, completamente transtornado, pondo-se entre os dois. Ele respirou fundo.

— Isaac — o velho disse, e ele focou-o com atenção. O chicote ainda tremia na mão, algo avermelhava suas extremidades — Acompanhe o frei das hortas aos aposentos e providencie salmoura para que trate as feridas — o homem umedeceu os lábios, e agora o frei de um metro e noventa compreendera que as manchas eram realmente de sangue — Em seguida retorne à minha sala, há uma mensagem que preciso que entregue ainda esta noite. Haja com discrição.

Parado rente à janela, o frei Isaac, apelidado por frei Mamute devido à sua altura, observava a noite. A neve caía, cobrindo tudo, e do gramado verde que houvera outrora, restava apenas montes e montes de gelo cristalino como um tapete branco ondulado.

Em todos os anos que servira Saint-Michel, esta era uma das noites mais confusas na colina. Desde que chegara ali, era sua função lidar com internos rebeldes, porém, nunca um deles ultrapassara tantos limites, a ponto de precisar ser amarrado na cama.

Estava em silêncio, pensativo, até que teve a quietude rompida pelo murmúrio que ecoou no quarto:

— Você não mudou nadinha, não é mesmo? — Marlon Gayler, ou seja lá o que estivesse no corpo do garoto, retrucou, chamando a atenção para si — Sempre calado, sempre rude. Como consegue conviver vendo sua cara feia todos os dias no espelho? — zombou de sua aparência e esboçou um sorrisinho, pois sabia que por trás daquela carranca, havia alguém dando ouvidos.

O Exorcismo de Marlon Gayler [Romance Gay]Onde histórias criam vida. Descubra agora