Capítulo 2

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Pov. Aurora

O curso de escrita ficava próximo ao meu antigo cursinho, no centro de São Paulo. Eu não demorava para chegar lá depois do trabalho por conta da facilidade do metrô, mas as vezes eu me atrasava, como hoje. Consegui me atrasar em plena sexta-feira.

A discussão de ontem sobre as aulas da Bel foi tão cansativa que tivemos que sair de casa com a desculpa de que iríamos comprar sorvete. Nenhuma de nós duas aguentava aquela gritaria desnecessária, muito menos a nossa vó. Fiquei até de madrugada fazendo a atividade e isso me fez levantar tarde o suficiente pra ter que compensar mais uma hora no trabalho.

Cheguei na aula quinze minutos atrasada. A professora não passou nada demais, estava apenas falando sobre o que gostaria de ter visto nos trabalhos anteriores. Hoje entregaríamos entregar uma atividade que o intuito era desenvolver personagens fictícios e suas características. Era difícil pensar que você pode criar praticamente outra pessoa no papel, com interesses e gostos diferentes dos seus, mas ao mesmo tempo era muito legal.

O curso tinha a duração de dois meses, isso queria dizer que estava há quase 2 anos mentindo para os meus pais. Tentei encurtar esse tempo durante as aulas, mas cada curso estava programado para ser realizado em meses específicos, então, acabei fazendo dois no ano passado e agora estou em pleno mês de junho quase terminando o terceiro.

Às vezes eu penso que tudo isso é surreal, mas é meu mundo surreal.

Terminando a aula, ouço Cinthia me chamar até sua mesa. Olhei atentamente para suas mãos, que seguravam uma pasta vermelha; ela estava com o meu trabalho. Engoli seco e fui em sua direção com todos os meus pertences na mochila.

Pode até ser normal um aluno ficar nervoso quando recebe uma nota, todo mundo já passou por isso, mas estou falando de Cinthia Stinp, uma grande roteirista brasileira. Ela já trabalhou com grandes nomes da área e ganhou muitos prêmios quando ainda era ativa. Hoje ela ensinava por prazer, então receber qualquer crítica dela era ótimo, até as más.

O seu cabelo ruivo tampava o seu rosto na maior parte do tempo, era bom chegar perto dela e poder encara-la nos olhos.

— Você já fez outros dois cursos com a escola, não é? — Assenti com a cabeça. — Agora entendo o seu trabalho.

— Como assim?

— Suas técnicas de escrita, como desenvolveu as pontas soltas do exercício... Poucos na sala conseguem fazer isso com facilidade. — Ela suspirou, mostrando o trabalho. Tinha alguns erros espalhados que foram destacados, mas ela não disse nada.

Peguei o trabalho e analisei tudo. Não tinha nenhum comentário extenso como ela costuma deixar no verso da última folha. Eu queria questionar, mas decidi ficar quieta.

— Aurora, você fez um ótimo trabalho. Eu não chamei só você, na aula da manhã também corrigi trabalhos muito bons, não quero que pense que estou lhe tratando de maneira especial!

— Não! Isso nem passou pela minha cabeça...

— Ótimo, estou dizendo isso porque sei que tenho muitos alunos "nariz em pé", e eu não suporto esse tipo de gente. Você vai chegar longe se continuar se dedicando, já pensou em cursar Cinema?

— É um dos meus objetivos, mas acho que meus pais surtariam.

— É, ser artista tem os seus riscos.

👻

Cheguei em casa mais tarde do que eu tinha imaginado. Peguei o metrô super lotado e o trânsito não ajudou muito na hora de pegar o ônibus. Estava exausta. Quando entrei, não tinha ninguém na cozinha ou na sala, parecia que todos estavam fora. Subi as escadas ligando a lanterna do celular e fui direto para o banho.

Já de toalha, segui para o meu quarto e, ao acender a luz , soltei um grito de susto. Minha mãe estava sentada na minha cama de braços cruzados.

— Jesus Cristo, isso não se faz! — falei com as mãos no peito.

— Eu que devo dizer que isso não se faz! São sete horas da noite, Aurora, onde você estava?

— Peguei trânsito saindo do metrô, estava lotado demais hoje.

— Você sai do cursinho às quatro e sempre chega em casa antes das sete. O que está escondendo de mim?

Senti todo o meu corpo gelar por dentro, o que eu falaria? Não poderia dizer que estava com as meninas por que era bem capaz de ela ligar e perguntar para as duas.

— Eu lhe fiz uma pergunta, Aurora.

— Eu sei, mãe, eu ouvi.

— Então me responda!

— Eu... Fiquei no cursinho até mais tarde, é isso.

— Fazendo o que?

— Tirando dúvidas sobre química.

— Você sempre foi ótima em química. — Suas
sobrancelhas se arquearam rapidamente. Ela sabia que eu estava mentindo e acho que meu nervosismo não ajudou muito.

— Ela pegou algumas anotações com a professora de inglês pra mim! — disse Bel, entrando no quarto. — Eu que pedi para ela manter segredo por que queria passar na prova de recuperação sozinha, sem nenhum curso ou professor particular, só eu e meus livros.

Ela suspirou bem fundo e nos encarou em seguida. Eu podia sentir meu coração quase saindo pela boca.

— Da próxima vez, avise que vai demorar para chegar! Quase me matou de preocupação. —Seus passos largos saíram pela porta e desceram até a cozinha.

Bel entrou comigo no quarto e trancou a porta. Deitei de toalha mesmo na cama e tentei me acalmar.

— Aury, isso já está fugindo do seu controle!

— Eu sei, mas falta tão pouco para acabar o curso, só mais duas semanas e pronto. Vou ter três certificados e poderei trabalhar em paz na minha área. Quem sabe um dia eu faça uma faculdade, eu não quero isso agora.

— Você é sem noção, mas eu amo você! — sorriu, saindo do quarto.

Mandei mensagem para as meninas explicando o ocorrido e elas ficaram indignadas, nossa conversa no dia anterior fez total sentido agora. Eu precisava contar a verdade pra eles, mas eu não sei se conseguia dizer isso. Eram só mais duas semanas e pronto. Mais tarde, após o jantar, desci até a cozinha para fazer um chá. Na volta, ouço meus pais conversando no quarto sobre mim, tentei chegar o mais perto possível da porta fechada para conseguir ouvir melhor.

— Ela está estranha, Roberto! — disse minha mãe. — Ela está no cursinho há três anos e até agora não passou em nenhum dos cursos que discutimos.

— Deve ser o trabalho, ela já está na cafeteria há muito tempo também. Eu sempre questionei que isso a atrapalha nos estudos, mas você não me escuta, Clarice.

— Eu não te escuto? É ótimo ela não depender da gente, ficar com o próprio dinheiro e entender o valor dele.

— Então eu não sei o que você quer que eu diga!

— Ela sempre foi uma ótima aluna, não acha estranho ela não ter passado em pelo menos uma das opções? — Um silêncio incômodo tomou lugar das falas, mas logo voltaram a discutir.

— Ela está enrolando a gente.

Merda.

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