Torre - 14 - Nessa vila tem quantas pessoas com dom?

20 3 0
                                    

— Hic. Hic. Mamãe. Papai. Hic.

Aquela cena grudou na minha cabeça. Eu não pude fazer nada na hora. Queria confortá-la, falar com ela, mas eu comecei a sentir e ver aquele quarto cada vez mais distante, como se o quarto todo estivesse afundando para o fundo do mar.

Em seguida eu acordei. Nem tinha amanhecido ainda. Me levantei e olhei pela janela e o céu estava começando a clarear. A hospedaria que ficamos era de três andares, com o restaurante em baixo e os quartos nos dois andares de cima. A maioria das casas daqui eram de dois andares.

Como ficamos no último andar, eu pude vislumbrar dessa paisagem à minha frente. Um vilarejo de arquitetura medieval, ao vivo e a cores, cercada por uma muralha de madeira, banhada por uma planície sem fim e uma floresta densa ao horizonte. Eu vi tudo isso enquanto o céu clareava lentamente, levantando o véu da noite e sol começar a se mostrar, num horizonte sem prédios de concreto.

Não sei dizer quanto tempo fiquei observando o nascer do sol. Só sei que aquilo clareou um pouco a minha mente. Ainda me lembro daquela menina. Devo ter me impressionado tanto ontem a ponto de ter sonhado com ela. E então lembrei de relance uma frase.

"Se está em Roma, faça como os romanos"

Por eu ter vivido em um mundo onde a escravidão havia sido abolida, minha vontade era de provocar uma revolução aqui. No entanto sinto que sou incapaz de resolver qualquer questão como esse na atual situação. Se eu quisesse fazer algo, teria que me preparar melhor. Vou observar, estudar, juntar forças e ver o que dá para ser feito.

Meu pai já havia acordado antes de mim. Sua cama estava vazia. Soha... está dormindo ainda, com a baba escorrendo pela boca. Então a porta se abriu. Meu pai surgiu, esfregando seu pescoço com um pano.

— Thalli. Vá tomar um banho. O poço fica nos fundos do restaurante. E leve a Soha também. Nos encontramos no restaurante.
— Está bem, pai.
— Soha. Soha! — Sacudi o corpo dela.
— Hmmmm... Não aguento tudo isso... Hmmm...
— Soha?! (Que diabos ela está sonhando?!)
— Hmmmm... Fuaaaaa... Hmm hmm... Ah... Bom dia. Nossa me deu até fome com o sonho que tive. Um prato enorme de carne assada.
— Haaa... Vamos. Vamos tomar um banho.
— Tá. Fuaaaaaa...

Ajudei ela a acordar e fomos até o poço. Banho de poço é algo simples. Joga o balde, pega a á..á..água (que pesado), lava o rosto, pega um pano, molha o pano e com o mínimo de roupa, passa o pano no corpo todo. Enquanto eu me lavava, Soha fazia o mesmo. Não pude deixar de observar sua pele lisa e perfeita. Ao final, jogamos água na cabeça um no outro.

— Pfaaaa... Humm! Que geladinho! Vamos, Thalli. Vamos comer! — Ela sorri e começa a me puxar.

O café da manhã de hoje é uma sopa de legumes, engrossada com farinha de trigo, pão e leite. Hum. É aquele leite da vila. A comida com carne eles cobram à parte, mas o café da manhã está incluso. A carne nessa região deve ser muito mais cara, mas não deve ser tão rara quanto na minha vila. Meu pai já estava terminando a dele quando chegamos. Foi Helena de novo que nos atendeu.

— Qual o plano pra hoje, Thalli?
— Hum. Hum. Gluct. — Terminei de comer. — Primeiro vamos verificar os preços correntes. É difícil começar qualquer coisa sem antes verificar se vai faltar ou sobrar com o que trouxemos. Felizmente tivemos um bom lucro com as pulseiras ontem, mas não é garantido que conseguiremos isso com as outras mercadorias.
— Hummm. Tá. Vou deixar com você. Apenas nos guie. — Ele coçou a cabeça.
— Pode deixar, pai.
— Thalli? Eu posso ver alguma coisa pra mim?
— Soha... Esse dinheiro é da vila. Se tivermos muito sucesso, vou pensar no seu caso.
— Mmmm... deixa pra lá!
— Haaa...

Subimos pro quarto, colocamos nossas roupas tradicionais e partimos para as compras. A rua principal que ontem estava vazia e só tinha pessoas, agora está repleta de quiosques aqui e ali. Eles não parecem ser organizados, fazendo uma fileira como nas feiras. Há um quiosque de um jeito entre uma loja e outra e de outro jeito na frente de outra loja.

Encontrei os produtos necessários para a vila, mas parecem muito mais caros do que as anotações de Thorel. Decidi perguntar para um vendedor.

— Com licença.
— Hum? Fala aí garoto. Tá procurando o que?
— Ah. Eu só queria perguntar quanto ficaria 100 quilos desse sal.
— Hã? 100 quilos? Aqui só tenho 10. Se você quiser fazer uma compra grande assim, teria que ir em alguma companhia. Essa aqui de trás é uma. - Ele apontou o dedão para a loja de trás dele.
— Ah sim. Muito obrigado pela informação.
— De nada. Se tiver interesse em compra pequena, estarei aqui até a hora do almoço.

Me despedi do senhor da venda e fui em direção à loja logo atrás. Os quiosques na rua devem fazer venda de varejo para a população local. O que explica seu valor. As companhias são estabelecimentos onde trabalham mais de uma pessoa. Diferente dos vendedores comuns, esses controlam diretamente o mercado da região.

A loja era limpa. Diferente daquela loja de utensílios, havia poucos produtos à mostra, próximos à parede e na parte central tinha algumas mesas e cadeiras. Nos fundos tinha um balcão longo com duas moças em pé.

— Bem-vindos à Companhia Dente-de-Leão. Posso ajudá-los em alguma coisa?

Um homem de meia-idade, um pouco baixinho, mas mais alto que eu, nos abordou.

— Bom dia. Gostaríamos ver o valor desses produtos. — Entreguei uma folha com a lista de compras.
— Hum? — Ele estava olhando para meu pai e então se virou e olhou pra mim. — Ah, pois não. Deixe-me ver. Hum. Hum. Vocês são da vila dos elfos pelo visto.
— Sim.
— O senhor Thorel não veio?
— Viemos no lugar dele. Ele não estava se sentindo bem.
— Certo... Algum de vocês três possui o dom de ler e escrever?
— Sim. Eu tenho.
— Ah. Que ótimo. Podemos conversar então.
— Hum? Por quê? E se não tivéssemos?
— Haaa... Infelizmente se não tivessem, não poderiam entender o contrato e as tabelas e ficaríamos no impasse ou vocês teriam que aceitar tudo o que eu dissesse.
— Entendi. Obrigado pela preocupação.
— Vamos nos sentar então, enquanto peço a um funcionário buscar as tabelas. A propósito me chamo Giorgin.

Ele parece ser um bom comerciante. Ao menos averiguou-se do meu dom antes de começarmos a negociação. Ele acenou para o balcão e uma das moças acenou com a cabeça e foi até os fundos da loja. Só tem uma coisa que eu percebi. Nessa vila parecem ter muitos com o dom. Pelo menos o Gilbart dos guardas e a Helena da hospedaria pareciam ter.

— Senhor Giorgin. Nessa vila tem quantas pessoas com dom?
— Hum? Ahh. A grande maioria de nós, humanos, temos o dom, garoto. Para dizer a verdade esse é um termo usado por vocês, demi-humanos. Para nós, quem não consegue ler e nem escrever é uma condição rara que chamamos de dislexia aguda.
— Isso é uma doença?
— Ah, não. Claro que não. É como se alguém nascesse com cabelo liso ou ondulado. O problema é que no caso da dislexia, pode atrapalhar a vida dessa pessoa. Infelizmente muitos de nós consideram os demi-humanos inferiores por conta da maioria de vocês nascerem com essa condição. - Ele abaixa a cabeça entristecido.
— Senhor. Aqui está. — A moça do balcão veio até nós. Uma jovem de cabelo preto, liso e curto.
— Ah. Obrigado, Sara. — Giorgin levantou a cabeça e recebeu os papeis da mão dela. — Thalli. Aqui está nossa tabela de preços...

Encaramos eu e Giorgin aquela tabela por alguns minutos. Os preços estão próximos às anotações do senhor Thorel. Provavelmente ele tem feito negócios aqui. Infelizmente Thorel não anotou todos os detalhes, como a loja ou pessoa que ele negociou, mas demos sorte. Eu trouxe uma quantidade de mercadoria um pouco a mais, caso os preços variassem muito. O valor da compra de nossas mercadorias também estavam próximas.

— Certo, senhor Giorgin. Vamos trazer a nossa mercadoria e acertamos mais tarde. Podem preparar essas do pedido até de tarde?
— Claro, senhor Thalli. Podem vir buscar logo após o almoço. Me desculpe por não termos barras de ferro no momento. Houve algum problema na entrega das minas.
— Tudo bem. Podemos passar por lá diretamente.
— Se for esse o caso, a nossa companhia possui uma filial lá. Escreverei uma carta para levar com o senhor. Caso tenha algo no estoque, poderão lhe entregar diretamente.
— Muito obrigado. Assim farei. Vamos pai? Vamos Soha?
— Hã? Ah! Sim! Sim! Vamos! Fuaaaa...

Soha tinha dormido mesmo sentada. Deve ser um tédio pra ela ficar nesses lugares. Enfim, pudemos fazer a troca da maior parte e com um pouco de sobra pelo visto. Eu não adquiri mantimentos a mais do que o planejado. O lucro da venda vou levar de volta à vila. Quanto aos acessórios, terei de voltar àquela loja. Essa companhia, infelizmente não comercializa isso.

A Jogada de ThalliOnde histórias criam vida. Descubra agora