look at how my tears ricochet

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Enquanto eu estivesse presa no estado de reminiscência, o instinto me informou que eu ficaria refém do tempo dos vivos, e não demorou muito para essa informação se comprovar verídica.

E eu? eu não queria sair, não por enquanto. Eu queria ficar por perto por mais um tempo. Então foi difícil para mim escolher lugares onde eu poderia habitar e quais pessoas poderia observar a rotina, agora sem mim. Queria saber o que a presença da minha ausência causava neles.

Primeiro fiquei ao lado da minha pequena Aurora, eu a observava dormir, e por vezes, quando ela acordava mais cedo que o casal que estava a criando, eu manipulava o chocalho que pairava acima de seu berço, em resposta minha filha apenas sorria para o barulho agradável que ouvia.

Me despedir dela não iria ser fácil, mas era necessário já que o instinto me dizia que eu não teria tanto tempo assim, logo eu deveria escolher qual catedral construir para habitar.

O conceito de construir catedrais era um local em vida qual eu deveria escolher para replicar no limbo para habitar, um ambiente que seria apenas meu para passar o resto da minha natureza-morta e mais nenhum outro fantasma poderia habitar sem minha permissão. Pensei em todos os lares que eu tive em vida e em como em nenhum deles eu realmente cheguei a me sentir em casa.

Antes que eu pudesse gastar meu tempo com isso, fui até aquela casa que foi a última.

Observei a rotina de James, ele se alternava entre trabalho e a casa, cujo agora estava quase completamente vazia. Ele havia se desfeitos das maiorias do moveis e mobília. No lugar ele tinha telas, tintas e cavaletes espalhados pela sala. No quarto, o guarda roupas ainda mantinha metade do espaço vazio denunciando as roupas que eu tinha retirado de lá. A cama ainda era de casal e James se esparramava nela. No banheiro ainda tinha duas escovas de dente, a dele e a minha, que eu tinha esquecido.

Me indignava saber o que havia dentro da geladeira, apenas água, comidas enlatadas, e álcool. E em especial, enrolado em um saco plástico James mantinha uma seringa, uma agulha , e um pedaço de silicone. Todos os dias que ele chegava do trabalho ele imediatamente abria a geladeira e retirava do bolso um saquinho do bolso traseiro.

Eu tive pela primeira vez a chance de testemunhar algo que James nunca teve coragem de me falar sobre ou muito menos fazer na minha presença: usar heroína. Não gosto do que vejo, mas o que sinto já era algo que eu costumava sentir em vida, culpa e a imensa responsabilidade por ter indiretamente causado isso a ele. Durante algumas semanas o vejo alternar entre assistir televisão, dormir e se drogar. É a revolta por sua recaída que me faz manipular os objetos daquela casa para assombrá-lo.

Manipulo as luzes, as portas, as cortinas e as janelas, jogo um prato ou outro no chão e tudo isso o assusta. Eu o impeço de ter uma noite de sono saudável e nas noites de tempestades toda vez que eu gritava para o céu, James ouvia minha voz em forma de trovões e raios.

No dia em que decido que estou cansada de viver na sombra da vida de James, de sua melancolia e depressão, pois eu já tinha tido o suficiente disso em vida, é o dia que decido reler a carta que eu tinha escrito antes de subir aquela falésia em Malibu.

Essa foi a forma que encontrei de implorar para todas as pessoas que são convencidas por seus parceiros e pelo mundo de que vocês são "a outra", "o plano B". Nunca deixe que pessoas usem de suas pedras como armas para atirarem contra você. Sejam suas pedras joias preciosas que vocês usaram para um dia fazerem anéis de diamantes para o idiota e tolo, sejam essas pedras carvões que eles atirarão contra você para causar o incêndio mais duradouro de suas vidas.

Lembre-se, se eu me queimar, você queimará junto, James.

Eu observava você respirar com seus olhos fechados, eu apenas sentava e esperava que você pudesse sentir meu toque por cima daquelas cobertas, mas tudo isso me era negado. Eu apenas existia em função de observar tudo que você faz ou não faz. Tentar fugir da minhas memórias e do luto por mim era uma coisa que você fazia diariamente e sem falta, afinal isso fazia parte da sua rotina de nunca me reconhecer pelo nome. Me pergunto que tipo de fim eu teria tido se você não tivesse desperdiçado todo o meu tempo subestimando o meu amor por você porque esse final de historia que estou vivendo agora não é nem de longe o meu favorito. Sim, James... eu finalmente entendi que meu amor deve ser celebrado e não apenas tolerado, pois ao mesmo tempo que te observo implorar silenciosamente para que eu tivesse ficado, também te vejo amaldiçoar meu nome publicamente, implorando pela vingança ao meu coração.

Eu deixei que suas estações mudarem minha mente. Os anos passavam e eu ainda estava lá, ao seu lado te amaldiçoando de um jeito que ninguém mais poderia. E não, eu não gostava dessa cena fantasmagórica, mas era como se eu não pudesse descansar enquanto eu não provasse do sofrimento que estava sendo sua vida desde que ele viu no que ajudou a minha vida a se tornar, uma coisa extinta e sem vestígios se não memórias perdidas.

Você não estava bem, nunca esteve na verdade e isso era nítido, pois o tempo tinha levado um doce tempo para te presentar com cabelos grisalhos e agora você tinha tantas rugas no rosto, dobras de pele que me lembravam do dobrar das ondas nos navios de guerra que mostravam homens partindo para a miséria e morrendo antes de isso ser possível, eu passei todos esse anos presa no tempo mundano apenas esperando sua morte como se eu fosse apenas uma criança.

Eu queria a pior que a morte para você, James.

Não consigo saber se estou me tornando meus piores medos como ele se tornou quando ele ficou igual ao seu pai, sendo alguém agressivo, soberbo e grotesco. Enquanto faço os mesmos gestos que meus pais adotivos faziam comigo, amaldiçoando-me e negando a minha presença no céu e o descanso sereno, mas poderia eu finalmente descansar sabendo que deixei James vivo o suficiente para corroer-se de culpa? Após anos agora, desde minha morte, eu o vejo ficar mais velho, fraco e com problemas graves de saúde.

O momento de parar de observa-lo está próximo, queira eu ou não.

Por mais que minhas lágrimas sejam tão salgadas quanto o mar que passei as tardes de agosto, elas ricochetavam contra esse amor ao mesmo tempo que o traziam até mim. Mostravam como elas eram resultado da minha fragilidade e vulnerabilidade, mas que o deixou entorpecido de culpa, de mágoa e apagando assim os nossos bons anos. Lágrimas minhas que varriam esse cenário de morte dessa relação, como a água dos lagos que entro em minha despedida me lavam, assim como o oceano varreu o corpo de Javier para longe do caos e próximo de sua esposa, Louise.

O perfeito passado que eu poderia ter tido. Imagine só como seria? Pais que se importam com você e te amam sabendo sua verdade, conhecendo sua pessoa e estando presentes em minha  vida como seus guias nessa longa jornada, que para mim foi mais curta do que eles e, esperava, mas eu os via, estendendo suas mãos e dizendo que não importava eu ter falhado, nem sequer se importava eu ter parado a viagem, ou de ter me rendido a tristeza infinita desse mundo. Eles ainda me aceitariam e o sentimento de aceitação fora algo que eu sabia naquela falésia que nunca mais teria na vida, mas foi com grande prazer, que o tive na morte.

Então eu peço a todas as linhagens de pessoas como eu que, independente dos erros, reconheçam a gratidão pelo que viveu até aqui. Reconheço-me que sou tão grata por ter sido a mulher levada e rebelde que conheceram na minha adolescência, como Marie Augustine, como sou grata por ter me tornado a mulher madura e descontrolada que me tornei ao descobrir meu passado e ter adotado ele de volta em minha vida, como Marie Magdalene. Meus pais, Javier e Louise Magdalene, tinham um sobrenome significativo e o carregarei comigo até quando a eternidade me permitir, mas não quero apagar Augustine de minha história, do meu folclore, pois isso o apagaria, mas eu quero eternizá-los. Assim como me eternizo como uma mulher de vários nomes, mas também de nenhum.

Em todos os casos, com amor e finalmente em paz, Marie Augustine Magdalene.

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