Um poeta alucinado.
Um Peter Pan que se desviou da Terra do Nunca.
Um patife, carregado pela culpa que transformou em pétalas de girassóis nos seus quadros.
É estranho refletir que todos esses insultos ou meios fatídicos de me inferiorizar tornam-se elogios. E é romântico quando sou elogiado por esses mesmos elogios, pois de forma alguma consigo me injuriar com essas palavras.
A probabilidade foi alta de a minha vida ser uma convicção sem propósito, uma entranha dilacerada de pesadelos e marés causadas pelas minhas próprias cascatas de oceanos azuis. Escolher nunca foi o problema, era tão exímio nisso... A contradição era a problemática em renunciar. Não por que eu sou um elo de determinista e vítima, talvez todos sejamos, mas sim porque o flagelo de minha pessoa se personificou das cicatrizes que tinham em minhas costas desde os 7 anos e estendeu-se até aquelas cicatrizes que um dia marquei nos rostos e lágrimas de alguém. De pessoas que eu amei.
Não quero culpar minha idade pelos problemas, aprendi aos 17 que isso não ajuda ninguém. Mas há um passado, há um caminho que nos faz chegar até onde chegamos, tomar atitudes que tomamos e ninguém está isento de consequências do passado. O que me arrependo foi de deixá-los me cegarem pela possibilidade do que poderia ter sido meu futuro. De quem poderia ter sido.
Escuto as vozes delas me assombrando, sinto suas presenças desde o líquido que injeto nas minhas veias até os postes de luzes que eu vejo em Paris, imaginando serem os mesmos que me guiavam até sua moradia, a mais iluminada e barulhenta da cidade até um filho da puta ter namorado ela na adolescência e sua família tê-la feito criar uma postura mais "etiquetada" e reclusa.
Não trocamos uma palavra sequer após o funeral, isso era frustrante e minhas condolências daquele momento impediam-me de agir contrário a o que o silêncio mandava. Não fale com ela, você arruinou a vida da filha de um homem descuidado. Não precisa concluir a tragédia dela como concluiu da mulher dentro do caixão.
Não foram meses ou anos longos, pois eu anestesiava o tempo e suas consequências a cada garrafa que tomava, cada cigarro que me possuía e cada seringa de heroína que eu escondia nos fundos da geladeira. Paris foi o lugar perfeito para um pintor melancólico refugiar-se, pois nela, as traições e maldades eram abafadas com romance alheio e tênues expressos em quadros. Eu via nos casais de rua tudo que um dia eu recusei ver para mim mesmo, não com arrependimento, mas sim porque eu não estava pronto para pertencer a esse mundo de clones cínicos que fingem famílias e amores perfeitos onde não existem.
Eu era um poeta sem causa, um rebelde sem pátria e agora, um cavaleiro sem armadura. A juventude nunca me abandonou e isso era algo que eu sentia no fogo de minha alma, fosse em um espírito vitoriano fosse numa imaturidade catastrófica. Talvez porque nesse período de minha vida eu conheci alguém que larguei e deveria ter ficado mais do que pretendia. Embora a ideia do amor genuíno e puro fosse esplendorosa, eu não pertencia a ela. E nem mesmo você, querida.
Ainda que minha última visita à América tenha sido em uma sala silenciosa, não pude deixar de perceber como os idiotas tornavam-na barulhenta e alta dizendo o que minhas palavras valiam, o que minha verdade escondia, mas ignoravam que o meu lado da história preenchia as lacunas vazias das deles. Estava eu sob efeito de meu orgulho ou autodefesa talvez, mas também estava garantindo que ninguém me vilanizasse o suficiente como um dia fizeram com a loira mais insurgente da cidade de Los Angeles. Os chamados imbecis estavam procurando alguém para culpar por aquela tragédia, como se já não bastasse mais o meu consciente culpar-me com sussurros e noites mal dormidas. Eu não iria aguentar muito tempo lá.
Retorno ao meu refugio, a cidade das luzes que era mais dominada pela crueldade do amor do que pelas dádivas dele. Deixo para trás minha filha e revogo o clamar por ela, permitindo que meu irmão e sua esposa a criem. Doce Aurora, agora em 1994, vejo como está brilhante e que sua carreira está promissora, mais do que se tivesse sido criada por mim e essa bagunça que chamo de lar, onde cadeiras estão quebradas e cômodos estão vazios. A verdade é que um homem de prosas tristes nunca poderia se misturar com as luzes benevolentes de uma Aurora.
VOCÊ ESTÁ LENDO
folklore
RomanceUm conto que se torna folclore é passado adiante e sussurrado pelos cantos. Ás vezes, ele é cantado. E ás vezes, ele é reescrito, com outro olhar, por outras pessoas de outras épocas e outros lugares, mas sempre mantendo sua essência de ter suas his...