i didn't have it in myself to go with grace

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POV

O último pensamento humano que tive foi de ter a certeza que eu estava seguindo todos os meus medos até lá em baixo, nas pedras quais as ondas da praia se quebravam, para ser mais específica, mas não me lembro de sentir o impacto do meu corpo se chocando contra elas. Não houve dor, não houve emoção, não houve nada.

Não que eu estivesse com expectativas quando mergulhei naquele o céu ensolarado, mas isso não é nada parecido com o que eu esperava do que "a morte" seria: a grande imensidão do nada, apenas completo vazio. O oco sem as dimensões de espaço, geometria ou tempo.

Me pergunto se isso é o purgatório ou o lugar para onde os suicidas vão após decidirem se retirar da narrativa, mas não tenho certeza. Talvez fosse isso que a vida após-a-morte se tratava, uma espécie de limbo onde não há cores além do preto. Será essa a grande resposta para as grandes dúvidas dos seres humanos? Tudo se tratava apenas de nada. Depois de raciocinar esses pensamentos tento acessar minhas emoções, mas não tive sucesso algum, logo concluo que sentimentos é algo exclusivo apenas para se ter quando estar em vida. Aqui não há sentimentos ou emoções além do nada.

Há reflexos no limbo, se pudesse comparar a algo da Terra seria aos espelhos. Me aproximo dos meus reflexos e vejo que não tenho corpo, não estou mais presa aquele conjunto de carne, ossos, órgãos e artérias. Não tenho nada do que me fazia ser eu em vida, não havia cabelos loiros ou a beleza exótica da qual tinha convivido por quase 30 anos.

Tento movimentar meus membros superiores, mas não consigo me mover, estou presa por correntes invisíveis a este grande tecido branco que me cobre por todo o comprimento ate o poderia ser considerado o chão, mas não era um chão como eu conhecia, apenas um firmamento que sustenta meu peso.

Se pudesse sentir algo, tenho certeza que estaria decepcionada.

Agora que estou morta, tudo o que desejo é estar viva. Aqui não tenho direito a ter a única coisa que realmente foi meu. Meus sentimentos e emoções, meu corpo, e até o controle de mim mesma. Sou apenas aura, um conceito místico, uma força espiritual invisível coberta por um tecido branco, um fantasma.

Explorei o limbo, mas não sei por quanto tempo já que o conceito de tempo não existia aqui, e não demorou muito para eu descobrir outros como eu. Eles me explicaram do que se tratava tudo isso, aqui não era o purgatório e muito menos o paraíso, pois o conceito de céu e inferno era uma grande dúvida aqui tanto quanto era na Terra. Eles chamam de "O Mundo Entre Mundos", uma dimensão onde se refugiam os desafortunados, os injustiçados, os desprezados e os esquecidos, chamavam assim, pois O Limbo estava entre o mundo dos vivos acima de si e tinha embaixo dele outro mundo, o Memoriae.

Memoriae deriva do latim. Faz referência a "recordação" que é a junção do prefixo "re", que significa "repetir" e "cordis", que significa "coração". Assim, "recordar" tem o sentido de fazer "passar novamente pelo coração". Isso é pleno de significado do memoriae já que o coração sempre foi o contraste do cérebro e da racionalidade.

Era exatamente para onde eu deveria e queria ir, para sentir novamente.

O que juguei como sendo os espelhos na verdade eram portais. Descobri isso quando me atrevi a atravessar um. No espaço e tempo onde fui parar era o ano de 1940. Eu estava dentro de uma reminiscência e não sei como eu sabia. Ainda era um mistério, eu apenas sabia, como um instinto.

Eu ainda era um fantasma, mas agora um pouco mais humana: tinha meus sentidos de volta, não era mais só uma aura, tinha meu corpo de volta e tudo o que eu vestia era um lindo vestido longo e branco. Em minhas mãos tinha um pequeno caderno de anotações.

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