Lembrado

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O começo se pareceria com o fim. Eu havia sido avisado. 

Desta vez, porém, o fim foi uma surpresa maior do que jamais tinha sido. Maior que qualquer fim que eu lembrasse em nove vidas. Maior que pular num poço de elevador. Eu tinha esperado que não houvesse mais memórias, mais pensamentos. Que
fim era este? 

O sol está se pondo — todas as cores estão rosadas e me fazem pensar em
minha amiga... qual seria o nome dela aqui? Algo a ver com... ondulações?
Ondulações e mais ondulações? Ela era uma bela Flor. As flores aqui são tão inertes e aborrecidas. Mas têm um cheiro maravilhoso. Os cheiros são a melhor parte deste lugar. 

Passos atrás de mim. Será que Fiandeira de Nuvens me seguiu novamente? Eu não preciso de um casaco. É quente aqui — finalmente! — e eu quero sentir o ar na
pele. Não quero olhar para ela. Talvez assim ela pense que não estou escutando e vá para casa. Ela é tão cuidadosa comigo, mas eu já sou quase uma adulta agora.
Não pode me criar para sempre. 

"Desculpe-me?", diz alguém, e eu não conheço a voz. 

Eu me viro para olhar para ela e não conheço o seu rosto, tampouco. Ele é
bonito.
O rosto na memória me fez voltar a mim mesmo num solavanco. Era o meu rosto!
Mas eu não me lembrava disso... 

"Oi", digo. 

"Olá. Meu nome é Gabriel." Ele sorri para mim. "Sou novo na cidade e...
acho que estou perdido." 

"Ah! Aonde está tentando ir? Eu levo você. O nosso carro está logo ali atrás..." 

"Não, não é longe. Eu estava passeando, mas agora não estou conseguindo
encontrar o caminho de volta para a rua Becker." 

Ele é um vizinho novo — que bom. Eu adoro novos amigos. 

"Você está bem perto", digo eu. "É só dobrar a segunda esquina dessa mesma
rua, mas você pode cortar caminho passando por essa viela. Dá direto lá." 

"Você pode me mostrar? Desculpe-me, como se chama?" 

"Claro! Venha comigo. Eu sou Jimmy, mas minha família
quase sempre me chama de Jy. De onde você é, Gabriel?" 

Ele ri. 

"Você quer dizer San Diego ou o Mundo Cantor, Jy?" 

"Tanto faz." Eu rio, também. Eu gosto do sorriso dele. "Há dois Morcegos nesta
rua. Eles moram naquela casa amarela com pinheiros." 

"Eu terei de dar um alô", murmura ele, mas sua voz mudou; está tensa. Ela
está olhando para a viela obscura como se esperasse ver alguma coisa. 

E há alguma coisa lá. Duas pessoas, um homem e um menino. O garoto
passa a mão por seus longos cabelos negros como se estivesse nervoso. Vai ver está preocupado porque também está perdido. Seus olhos bonitos estão arregalados e agitados. O homem está muito calmo. 

Jack e Sam. Meu coração bateu forte, mas o sentimento foi peculiar, errado.
Pequeno demais e... alvoroçado. 

"Estes são meus amigos, Jy", diz Gabriel. 

"Ah! Ah, como vai?" Estendo a mão para o homem — é ele quem está mais
perto. 

Ele pega a minha mão, e seu aperto é muito forte.
Ele me puxa para a frente, para bem perto do corpo dele. Eu não compreendo.
Parece errado. Eu não gosto.
Meu coração bate mais rápido, e eu estou com medo. Eu nunca tive medo
desse modo antes. Eu não compreendo.
A mão dele balança na direção do meu rosto, eu ofego. Aspiro com a boca a
névoa que vem da sua mão. Uma nuvem prateada com gosto de framboesa. 

A Hospedeira/DestielOnde histórias criam vida. Descubra agora