Horrorizado

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Diminuí o passo quando ouvi o som de vozes. Não estava perto o bastante do hospital
para que fosse o Doc. Outras pessoas voltavam. Encostei-me na parede de pedra e
engatinhei para a frente tão silenciosamente quanto possível. Minha respiração estava
ofegante devido à corrida. Eu tapei a boca para abafar o som. 

— ... por que a gente continua a fazer isso? — queixava-se alguém. 

Eu não tinha certeza de de quem era a voz. Alguém que eu não conhecia bem. Talvez
uma mulher? Ela mostrava o mesmo tom deprimido que eu havia reconhecido da outra vez.
Isso eliminou qualquer noção de que eu pudesse estar imaginando coisas. 

— O Doc não queria. Dessa vez foi ideia de Sam. 

Eu tinha certeza de que era Uriel quem tinha falado agora, embora a voz dele
estivesse um pouco mudada pela repulsa nela reprimida. Uriel tinha estado com
Anna na incursão, é claro. Eles faziam tudo juntos. 

— Achava que ele fosse o maior oponente desse negócio. 

Esse era Alastair, supus. 

— Ele está mais... motivado agora — respondeu Uriel. A voz era calma, mas
pude perceber que estava zangado com alguma coisa. 

Eles passaram só a uns 15 centímetros de onde eu estava encolhido nas rochas.
Fiquei congelado, prendendo a respiração. 

— Acho que isso é doença — murmurou a mulher. — Repulsivo. Nunca vai
funcionar. 

Eles andavam lentamente, os passos pesados de desesperança.
Ninguém respondeu. Ninguém falou novamente, que eu conseguisse ouvir. Esperei
até o ruído dos passos diminuir um pouco, mas não podia protelar até que o último
som desaparecesse por completo. Dean talvez já estivesse me seguindo.
Avancei engatinhando o mais rápido possível, e quando decidi que estava a salvo,
comecei a correr de novo.
Vi as primeiras indicações débeis de luz do dia se derramando na curva do túnel
mais adiante, e passei a um caminhar acelerado, porém silencioso, que ainda me permitia
avançar rapidamente. Eu sabia que assim que contornasse a curva, poderia ver o vão de
entrada do reino de Doc. Então, segui, e a luz ficou mais intensa.
Eu me deslocava cautelosamente agora, pousando cada pé com silêncio cuidadoso.
Tudo estava muito quieto. Por um momento, imaginei se não estava errado e não havia
absolutamente ninguém ali. Então, quando a entrada irregular tornou-se visível,
jogando um clarão de luz branca do sol na parede oposta, pude ouvir o som de um
discreto soluçar.
Fui na ponta dos pés até a beira da abertura e parei, prestando atenção.

O choro continuou. Outro ruído, uma batida suave e rítmica, marcava compasso
com ele. 

— Calma, calma. — Era a voz de Bob, embargada com alguma emoção. — Está tudo
bem. Está tudo bem, Doc. Não seja tão rigoroso. 

Passos abafados, mais de um conjunto deles, andavam pela peça. Farfalhar de tecido.
Ruído de esfregar. Aquilo me lembrou dos ruídos de lavar.
Havia um odor que não pertencia ao lugar. Estranho... não totalmente metálico,
mas tampouco totalmente de outra coisa. O cheiro não era familiar — eu estava seguro
de nunca tê-lo sentido antes —, e, contudo, tive um estranho sentimento de que aquele
odor deveria ser familiar para mim.
Fiquei com medo de contornar a esquina. 

Qual a pior coisa que podem fazer conosco?, enfatizou Gabe. Eles nos mandarem embora? 

--Tem razão. 

As coisas definitivamente tinham mudado, se isso era o pior que eu podia temer dos
humanos agora.
Respirei fundo — notando outra vez aquele cheiro estranho, errado — e contornei
a borda rochosa devagar, entrando no hospital.
Ninguém notou minha presença.
Doc estava ajoelhado no chão, o rosto enterrado nas mãos, os ombros sacudindo.
Bob estava inclinado sobre ele, dando tapinhas em suas costas.
Sam e Adam estavam colocando uma maca ao lado de um dos dois catres no centro
do cômodo. O rosto de Sam estava fechado — a máscara tinha voltado enquanto ele
esteve fora.
Os catres não estavam vazios, como normalmente ficavam. Alguma coisa, escondida
sob cobertores verde-escuros, preenchia a extensão de ambos. Comprida e irregular,
com curvas e ângulos familiares...
A mesa rústica de Doc estava arrumada à cabeceira dos catres, no ponto mais
brilhante de luz do sol. Ela brilhava prateada — bisturis resplandecentes e um
sortimento de instrumentos médicos antiquados que eu não era capaz de nomear.
Mais brilhantes ainda, havia outras coisas prateadas. Segmentos tremeluzentes de
prata estirados em pedaços retorcidos, torturados sobre a mesa... minúsculos
filamentos prateados desarraigados, despidos, espalhados... respingos de líquido
prateado lambuzavam a mesa, os cobertores, as paredes...
A quietude do cômodo foi abalada por meu grito. O cômodo inteiro foi abalado,
passando a girar e jogar ao barulho, rodopiando à minha volta de tal modo, que não
pude encontrar a saída. As paredes, as paredes manchadas de prata, se erguiam para
bloquear minha fuga, não importava que caminho eu tomasse.
Alguém gritou meu nome, mas não pude distinguir de quem era a voz. O grito foi
alto demais. Machucou minha cabeça. A parede pétrea, escorrendo prata, bateu, fechou-
se em mim, e eu caí no chão. Mãos pesadas me seguraram ali. 

A Hospedeira/DestielOnde histórias criam vida. Descubra agora