Mudado

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A campainha tocou, anunciando mais um visitante na loja de conveniência. Entrei cheio de culpa e afundei a cabeça atrás de uma prateleira de mercadorias que estávamos examinando.
Pare de agir como um criminoso, aconselhou Gabriel.
Não estou agindo, repliquei sucintamente.
As palmas de minhas mãos estavam frias sob um delgado lustro de suor, embora o lugar estivesse um tanto quente. As janelas amplas deixavam entrar sol em demasia para que o aparelho de ar-condicionado barulhento e sobrecarregado pudesse dar conta.
Qual deles?, perguntei com urgência.
O maior, disse-me ele.
Peguei o maior dos dois pacotes disponíveis, uma bolsa de lona que definitivamente parecia ser capaz de carregar mais coisas do que eu podia aguentar. Então me encaminhei para onde as garrafas de água estavam expostas.
Nós podemos levar três garrafões de quatro litros, decidiu ele. Isso nos dá três dias para encontrá-los.

Respirei fundo, tentando dizer a mim mesmo que não iria continuar com aquilo.
Que estava simplesmente tentando obter mais coordenadas dele, que isso era tudo.
Quando tivesse a história toda, eu encontraria alguém — outro Buscador, talvez, um menos repulsivo da que fora designado para mim — e passaria as informações.
Eu estava apenas sendo consciencioso,  prometi a mim mesmo.
Minha canhestra tentativa de mentir para mim mesmo foi tão patética, que Gabriel não lhe prestou a menor atenção, não sentiu nenhuma preocupação. Deve ser... tarde demais para mim, conforme advertira a Buscadora. Talvez eu devesse ter tomado um avião.

--Tarde demais? Bem que eu queria!- rosnou Gabriel. --Não posso obrigar você a fazer nada que não queira fazer. Não posso sequer levantar minha mão!

O pensamento dele era um lamento de frustração.
Olhei para minha mão, apoiada na cintura em vez de apanhando a água como ele queria tanto fazer. Pude sentir a impaciência dele, seu desejo quase desesperado de estar a caminho. Em fuga outra vez, como se minha existência não fosse mais que uma curta interrupção, uma temporada perdida que agora ele deixava para trás.
Ele deu o equivalente mental de uma fungada à ideia e tratou de voltar aos negócios.

Qual é!, insistiu ele. Vamos embora de uma vez! Já vai escurecer.

Com um suspiro, peguei a maior embalagem de garrafas d’água na prateleira. Ela quase caiu no chão antes de eu segurá-la contra a beirada de uma prateleira mais baixa.
Meus braços pareciam ter quase saltado das articulações.
— Você está brincando comigo! — exclamei em voz alta.
Cale essa boca!
— Perdão? — perguntou um homem pequeno e encurvado, o outro cliente, do
final do corredor.
— Hum... nada — resmunguei, sem olhar para ele. — É mais pesada que eu
esperava.
— Quer uma ajuda? — ofereceu ele.
— Não, não — respondi, apressado. — Vou pegar a menor.
Ele retornou à escolha de batatas fritas.
Não, não vai, garantiu-me Gabriel. Já carreguei coisa mais pesada que isso. Você nos deixou completamente molengas, Castiel, acrescentou ele, irritado.
Sinto muito, respondi distraido, estupefata de ele ter usado o meu nome pela primeira vez.

Use as pernas para ajudar.
Lutei com a embalagem de garrafas d’água, imaginando até onde seria possível esperar que eu carregasse aquilo. Consegui chegar à caixa na frente da loja, pelo menos.
Com grande alívio, apoiei o peso no balcão. Coloquei a bolsa em cima da embalagem e então acrescentei uma caixa de barras de granola, um pacote de donuts recheados e um saco de fritas da estante mais próxima.
Água é mais importante que comida, no deserto, e não podemos carregar mais que isso...
Eu estou com fome, interrompi. E isso aqui é leve.
As costas são suas, suponho, disse ele de má vontade. Então, ordenou: Pegue um mapa.

Coloquei o que ele queria, um mapa topográfico da região, com o resto das coisas no balcão. Não mais que um acessório na charada dele.
O caixa, um homem de cabelos brancos e sorriso bem disposto, escaneou os
códigos de barra.
— Fazendo uma caminhada? — perguntou amavelmente.
— A montanha é muito bonita.
— O começo da trilha é logo ali... — disse, indicando com um gesto.
— Eu vou encontrá-lo — prometi rapidamente, pegando o fardo pesado e mal equilibrado de volta no balcão.
— Melhor partir antes de escurecer, querida. Se não quiser se perder.
— Eu vou.
Gabriel tinha pensamentos sulfurosos sobre o amável senhor.
Ele estava sendo simpático. Está sinceramente preocupado com meu bem-estar -- lembrei-o.

A Hospedeira/DestielOnde histórias criam vida. Descubra agora