Tolerado

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Era verdade que eu não estava cheirando bem.
Eu perdera a conta dos dias que estava ali — há mais de uma semana agora? Mais de duas? —, e todos eles suando nas mesmas roupas desde a minha desastrosa jornada no deserto. Tanto sal havia secado na minha blusa de algodão, que ela tinha vincos como
as dobras rijas de um acordeão. Antes ela era amarelo-clara; agora, um manchado de aparência mórbida, tingido no mesmo tom púrpura-escuro do chão da caverna.
Meus cabelos curtos estavam granulosos e quebradiços; dava para senti-los salientarem-se em
emaranhados fora de controle em volta da cabeça com uma crista dura no alto, como uma cacatua. Eu não tinha visto meu rosto ultimamente, mas imaginei-o em dois tons
de púrpura: o da terra na caverna e o da minha contusão em processo de cura.

Então pude entender a consideração de Bob — sim, eu precisava de um banho. E também trocar de roupas, para fazer o banho valer a pena. Bob me ofereceu algumas roupas de Jack enquanto as minhas secavam, mas não quis estragar as poucas coisas de Jack, alargando-as. Felizmente, ele não tentou me oferecer nada de Sam. Acabei com uma camisa velha mas limpa de flanela de Bob que tivera as mangas arrancadas e um
desbotado par de calças de moletom esburacado e cortado que passara meses deixado de
lado. As peças foram colocadas sobre meu braço — bem como um monte áspero de nacos irregulares de odor desprezível que Jeb afirmou ser sabão de cacto caseiro na minha mão — enquanto eu seguia Bob para a sala com os dois rios.
Mais uma vez, não estávamos sós, e mais uma vez fiquei extremamente desapontado com tudo aquilo. Três homens e uma mulher — a da trança mesclada — estavam
enchendo baldes de água do riacho menor. Um barulho d’água e uma gargalhada ecoaram alto da sala de banhos.

— A gente só vai esperar nossa vez — disse Bob.

Ele se encostou na parede. Fiquei rígido ao lado dele, desconfortavelmente
consciente dos pares de olhos cravados em mim, embora eu mantivesse os meus na fonte escura e quente que corria sob o piso poroso.
Depois de uma pequena espera, três mulheres saíram da sala de banhos, os cabelos molhados pingando nas costas das blusas — era a mulher atlética de pele cor de caramelo, uma jovem loura que eu não me lembrava de ter visto antes e a prima de Gabriel, Becky. A risada delas parou abruptamente assim que nos viram.

— Boa-tarde, senhoras — disse Bob, tocando a testa como se fosse a aba de um chapéu.

— Bob — respondeu a mulher cor de caramelo friamente.

Becky e a outra jovem nos ignoraram.

— Certo, Cas — disse ele quando elas passaram. — É todo seu.

Lancei para ele um olhar taciturno, então andei cuidadosamente para a sala escura.
Tentei lembrar como era o chão — eu tinha certeza de que havia alguns bons centímetros antes da beirada da água. Primeiro tirei os sapatos, para poder perceber a água com os pés.
Estava muito escuro. Eu me lembrei da superfície negra da piscina — repleta de sugestões do que podia espreitar sob seu espelho opaco — e tremi. Mas quanto mais esperasse, mais tempo teria de ficar ali, então coloquei as roupas limpas perto de meus
sapatos, fiquei com o sabonete fedorento e fui arrastando os pés com cuidado até achar a beira da piscina.
A água estava fresca, se comparada à atmosfera vaporosa da caverna. Eu me senti bem. Isso não impediu que continuasse apavorado, mas mesmo assim pude apreciar a sensação. Muito se passara desde o que quer que fosse tivesse sido fresco. Entrei na água,
completamente vestido com minhas roupas sujas, até a altura da cintura. Pude sentir a corrente do córrego remoinhar em volta de meus tornozelos, afagando a rocha. Fiquei
contente de a água não ser parada — seria perturbador sujá-la, imundo como estava.
Agachei-me na tinta até ficar submersa até os ombros. Passei o sabonete áspero em minhas roupas, pensando que seria a maneira mais fácil de garantir que ficassem limpas.
Onde o sabonete tocou em minha pele, ardeu brandamente.
Despi as roupas ensaboadas e esfreguei-as sob a água. Então as enxaguei repetidas vezes, até não haver nenhuma possibilidade de meus suores ou lágrimas terem sobrevivido nelas, e as torci e estendi no chão ao lado de onde eu achava que meus
sapatos estavam.
O sabonete ardeu mais forte contra a pele nua, mas a ardência era suportável, pois significava que eu podia ficar limpo outra vez. Quando acabei de me ensaboar, toda a
minha pele formigava e meu couro cabeludo estava queimando. Parecia que os lugares onde haviam se formado lesões estavam mais sensíveis que o resto do corpo — elas ainda deviam estar lá. Fiquei contente de pôr o sabonete ácido no chão de rocha e
enxaguar meu corpo repetidas vezes, como tinha feito com as roupas.
Foi com uma estranha mistura de alívio e pena que andei na água para sair da
piscina. A água estava muito agradável, assim como a sensação da pele limpa, embora meio comichosa. Mas já estava farta da cegueira e das coisas que podia imaginar na escuridão. Fui apalpando até encontrar minhas roupas secas, então vesti-as rapidamente
e enfiei os pés enrugados por causa da água nos sapatos. Levei minhas roupas lavadas numa das mãos e o sabonete com muito cuidado entre dois dedos da outra.
Bob riu quando apareci; seus olhos estavam no sabonete e na cuidadosa maneira de eu segurá-lo.

A Hospedeira/DestielOnde histórias criam vida. Descubra agora