— Olá, Castiel! Entre. Por que não escolhe uma poltrona e fica à vontade?
Hesitei na soleira da porta do consultório da Confortadora, um pé do lado de
dentro, o outro do lado de fora.
Ela sorriu, apenas um minúsculo movimento nos cantos da boca. Era muito mais
fácil ler expressões faciais agora; as pequenas contrações e alterações musculares se
tornaram familiares depois de meses de exposição. Eu podia ver que a Confortadora
achava minha relutância um pouco divertida. Ao mesmo tempo, dava para sentir sua
frustração por eu ainda ficar apreensiva quando a procurava.
Com um suspiro baixinho de resignação, entrei no pequeno cômodo de cores
brilhantes e sentei-me na poltrona de sempre — a vermelha balofa, que era a que ficava
mais longe de onde ela se sentava.
Os lábios dela se franziram.
Para evitar seu olhar atento, fiquei olhando fixamente pelas janelas, para as nuvens
que corriam na frente do sol. O leve cheiro da maresia soprava suavemente pela sala.
— Então, Castiel. Há tempos você não aparece para me ver.
Encarei seus olhos com um pouco de culpa.
— Deixei uma mensagem sobre o nosso último compromisso. É que um estudante
meu pediu para me ver.
— Sim, eu sei. — Ela deu o sorriso minúsculo outra vez. — Recebi sua mensagem.
Ela era atraente para uma mulher jovial, em se tratando de humanos. Havia
deixado os cabelos loiros
os mantinha de tamanho curto.
— Sinto muito — disse, já que pareceu que ela estava esperando uma reação.
— Tudo bem. Compreendo. Vir aqui é difícil para você. Você gostaria muito que não fosse necessário. Nunca foi necessário para você antes. Isso o está assustando.
Fiquei olhando fixo para o chão de madeira.
— Sim, Confortadora.
— Eu sei que pedi que me chamasse de Mary.
— Sim...Mary.
Ela riu ligeiramente.
— Você ainda não fica à vontade com nomes humanos, fica, Castiel?
— Não. Para ser honesto, parece... uma capitulação.
Ergui os olhos para vê-la acenar lentamente em concordância.
— Bem, posso compreender por que você, especialmente, se sentiria desse modo.
Engoli alto quando ela disse isso e fixei o olhar no chão outra vez.
— Vamos falar de algo mais fácil por enquanto — sugeriu Mary — Você continua
a gostar do seu Chamado?
— Continuo. — Isso era mais fácil. — Eu comecei um novo semestre. Bem que me
perguntei se não ficaria cansativo, repetir o material, mas até aqui não ficou. Ter novos ouvintes faz as histórias novas outra vez.
— Tive boas notícias de John sobre você. Ele diz que sua turma está entre as mais requisitadas da universidade.
Minhas faces esquentaram um pouco ao ouvir o elogio.
— É bom ouvir isso. Como vai seu companheiro?
— John está ótimo, obrigada. Nossos hospedeiros estão em excelente forma. Temos muitos anos à nossa frente, eu acho.
Fiquei curioso para saber se ela permaneceria neste mundo, se iria mudar-se para um
novo hospedeiro humano quando chegasse a hora ou se iria partir. Mas não queria fazer
perguntas que pudessem nos levar a áreas mais difíceis de discussão.
— Gosto de lecionar — disse em vez disso. — É um pouco ligado ao meu
Chamado com as Algas Visionárias, então fica mais fácil do que algo menos familiar.
Sou grato a John por ter me requisitado.
— Eles têm sorte de poder contar com você — sorriu Mary carinhosamente. —
Você sabe quanto é raro um professor de história ter experiência ao menos de dois
planetas no currículo? Você, porém, viveu uma duração em quase todos eles. E em Origem, além disso! Não há uma escola neste planeta que não adoraria roubá-la de nós. John está tramando maneiras de manter você ocupado, de modo que não tenha tempo
de pensar em se mudar.
— Professor honorário — corrigi-a.
Mary sorriu e então respirou fundo, o sorriso desaparecendo lentamente.
— Você não vem me ver há tanto tempo que fiquei pensando se seus problemas não estavam se resolvendo por si mesmos. Ocorreu-me, então, que talvez a razão de sua ausência fosse porque estavam se agravando.
Fiquei olhando fixo para minhas mãos e não disse nada.
Minhas mãos eram de um tom claro de castanho. Uma sarda escura marcava a pele bem acima do pulso
esquerdo. Minhas unhas eram cortadas curtas. Eu não gostava da sensação de unhas compridas. Era desagradável quando elas roçavam a pele de modo inadequado. E meus dedos eram tão longos e finos, mesmo para um humano.
Ela limpou a garganta após um minuto.
— Tenho a impressão de que minha intuição estava certa.
— Mary — Falei seu nome devagar. Protelando. — Por que você manteve seu nome humano? Isso fez você se sentir mais... íntegra? Com seu hospedeiro, quero dizer? — Eu também teria gostado de saber sobre John, mas era uma pergunta muito pessoal. Seria errado fazê-la a alguém além dele, mesmo à sua companheira. Eu estava com medo de já ter sido indelicada demais, mas ela riu.
— Por Deus, não, Castiel. Não lhe contei? Hummm. Talvez não, já que meu
trabalho não é falar, mas ouvir. A maioria das almas com que lido não necessita de tanto incentivo quanto você. Sabia que vim para a Terra numa das primeiríssimas implantações aqui, antes de os humanos ao menos terem ideia de quem éramos? Eu tinha vizinhos humanos dos dois lados de minha casa. John e eu tivemos de fingir que
éramos os nossos hospedeiros durante vários anos. Mesmo depois de termos
colonizado a área imediata, nunca sabíamos quando um humano podia estar por perto.
Então, Mary apenas se tornou quem eu sou. Além disso, a tradução de meu antigo nome tinha quatorze palavras e não dava para encurtar de um jeito bom. --Ela deu um sorriso largo, mostrando os dentes. Entrando pela janela, a luz do sol bateu em seus olhos e projetou seu reflexo verde-prateado dançando na parede. Por um instante, as
íris cor de esmeralda brilharam iridescentes.
Eu não tinha a menor ideia de que esta mulher suave e acolhedora havia feito parte da linha de frente. Tanto que levei um minuto para processar a informação. Olhei fixamente para ela, de maneira surpresa e subitamente mais respeitosa. Eu nunca tinha levado Confortadores muito a sério — jamais precisei deles antes. Eles existiam para os que tinham de se esforçar, para os fracos, e eu me envergonhava de estar aqui. Conhecer
a história dela fez com que me sentisse um pouco menos desconfortável com ela. Mary compreendia a força.
— Isto a perturbou? — perguntei. — Fingir ser um deles?
— Não, não de verdade. Veja, esse hospedeiro representou muito com que se acostumar... havia tanta coisa nova. Sobrecarga sensória. Seguir o padrão estabelecido era mesmo tudo o que eu podia fazer no começo.
— E John... você escolheu ficar com o marido de sua hospedeira? Depois que
acabou?
Essa pergunta era mais dirigida, e Mary compreendeu-a imediatamente. Ela mudou de posição no assento, estendendo as pernas para cima e dobrando-as sob si. Fitou
pensativamente um ponto pouco acima de minha cabeça enquanto respondia.
— Sim, escolhi John... e ele me escolheu. No começo, é claro, tratava-se de uma
possibilidade aleatória, de uma tarefa. Nós nos ligamos, naturalmente, por passarmos tanto tempo juntos, compartilhando os perigos de nossa missão. Como presidente da
universidade, John tinha muitos contatos. Nossa casa era uma instalação de inserção.
Recebíamos com frequência. Humanos entravam por nossa porta e saíam de nossa espécie. Tudo tinha de se passar de maneira muito rápida e calma... você conhece a violência a que esses hospedeiros são propensos. Vivíamos todos os dias sabendo que podíamos encontrar o fim definitivo a qualquer momento. Havia agitação constante e
medo frequente. Todas, razões muito boas para John e eu formarmos um vínculo e decidirmos ficar
juntos quando o segredo já não era necessário. Eu poderia mentir para você, mitigar
seus temores, dizendo que essas foram as razões. Mas... — Ela balançou a cabeça e então pareceu acomodar-se mais profundamente na poltrona, seus olhos me perfurando. —
Em tantos milênios, os humanos nunca entenderam o amor. Quanto é físico, quanto está na mente? Quanto é acidente e quanto é destino? Por que casamentos perfeitos se
desintegram e casais impossíveis prosperam? Não sei as respostas nem um pouco mais que eles. O amor simplesmente está onde está. Minha hospedeira amava o hospedeiro
de John, e esse amor não morreu quando a propriedade das mentes mudou.
Ela me observou cuidadosamente, franzindo de leve a testa quando afundei em minha poltrona.
— Gabriel ainda sofre por Sam — afirmou.
Senti minha cabeça concordar sem eu desejar a ação.
--Você sofre por ele.
Fechei meus olhos.
— Os sonhos continuam?
— Todas as noites — murmurei.
— Fale-me sobre eles. — Sua voz era suave, persuasiva.
— Não gosto de pensar sobre eles.
— Eu sei. Tente. Pode ser que ajude.
— Como? Como ajudaria dizer que vejo o rosto dele todas as noites quando fecho
os olhos? Que acordo e começo a chorar quando vejo que ele não está? Que as
memórias são tão fortes, que já não posso mais separá-las das minhas?
Parei abruptamente, cerrando os dentes.
Mary tirou um lenço branco do bolso e me ofereceu. Quando não me mexi, ela se levantou, andou em minha direção e deixou-o cair em meu colo. Ela sentou-se no braço de minha poltrona e esperou.
Eu continuei obstinado mais meio minuto. Então agarrei o pequeno quadrado de pano e enxuguei meus olhos.
— Detesto isso.
— Todo mundo chora no primeiro ano. Essas emoções são tão difíceis. Nós todos viramos crianças um momento, queiramos ou não. Eu chorava toda vez que via um belo pôr do sol. O gosto da manteiga de amendoim às vezes também me fazia chorar.
— Ela acariciou o alto de minha cabeça, depois correu os dedos delicadamente pela mecha de cabelo que eu sempre mantinha atrás da orelha. — Estes cabelos tão lindos, tão brilhantes — observou ela. — Toda vez que a vejo estão mais curtos. Por que os
mantém assim?
Já em lágrimas, eu ainda não sentia ter muita dignidade a defender. Por que alegar que assim era mais fácil de cuidar, como geralmente eu fazia? Afinal, eu tinha vindo aqui para confessar e receber ajuda — melhor acabar logo com isso.
— Isso o incomoda. Ele gosta deles longos.
Ela não ofegou, como em parte esperei que fizesse. Mary era boa em seu ofício. Sua resposta só veio um segundo depois... e apenas ligeiramente incoerente.
— Você... ele... ele ainda está tão... presente?
A verdade assustadora escapou de meus lábios.
— Quando quer estar. Nossa história o aborrece. Ele fica mais inativo quando estou trabalhando. Mas está lá, certamente. Às vezes sinto que ele está tão presente quanto eu. — Minha voz era apenas um sussurro quando acabei de falar.
— Castiel! — exclamou Mary, horrorizada. — Por que não me falou que era tão grave? Há quanto tempo é assim?
— Está piorando. Em vez de enfraquecer, ele parece estar ficando mais forte. Não é tão grave quanto no caso do Curandeiro ainda... a gente falou sobre Alfie, lembra? Ele não assumiu o controle. Não vai assumir. Não vou deixar isso acontecer! — O tom de
minha voz subiu.
— Claro que não vai acontecer — tranquilizou-me. — Claro que não. Mas se você está assim tão... infeliz, deveria ter me contado antes. Precisamos procurar um Curandeiro.
Levei um momento, emocionalmente distraída, para entender.
— Um Curandeiro? Você quer que eu salte?
— Ninguém pensaria mal dessa opção, Peregrina. Compreende-se, se o hospedeiro está com defeito...
— Defeito? Ele não é defeituoso. Eu sou. Sou fraco demais para este mundo! —
Minha cabeça caiu em minhas mãos enquanto a humilhação me possuía. Novas lágrimas brotaram em meus olhos.
O braço de Mary pousou sobre meus ombros. Eu estava me esforçando tanto para controlar minhas emoções desenfreadas, que não me afastei, apesar da impressão demasiado íntima que aquilo provocava.
Aquilo também incomodou Gabriel. Ele não gostou de ser abracado por uma
alienígena.
É claro, Gabriel estava mais que presente naquele momento — e insuportavelmente
convencido, quando afinal admiti seu poder. Ele estava alegre. Era sempre mais difícil controlá-lo quando me distraía com emoções como essa.
Tentei me acalmar para ser capaz de colocá-lo em seu lugar.
Você está no meu lugar. O pensamento dele foi fraco, mas inteligível. Estava piorando muito; agora ele era forte o bastante para falar comigo sempre que queria. Era tão ruim quanto aquele primeiro minuto de consciência.
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A Hospedeira/Destiel
Science FictionNosso Planeta foi tomado por um inimigo que não pode ser detectado. Gabriel Novak se recusa a desaparecer e quando ele é capturado tem a certeza que é o fim. Castiel, a "alma" invasora designada para o corpo de Gabriel encontra dificuldades para tom...