Disputado

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Foi demais para nós dois, vê-lo aqui, agora, depois de aceitar que nunca mais o veríamos, depois de acreditar que o havíamos perdido para sempre. Aquilo me paralisou como uma pedra, deixou-me incapaz de reagir. Eu queria olhar para o tio Bob, entender sua resposta angustiante no deserto, mas não pude mover meus olhos. Eu encarava Sam, sem compreender.
Gabriel  reagiu de modo diferente.
— Sam — gritou ele; através da minha garganta ferida, o som foi apenas um
grasnido.
Ele me empurrou adiante, quase como havia feito no deserto, assumindo o controle de meu corpo paralisado. Dessa vez, porém, foi pela força.
Eu não fui capaz de pará-lo a tempo.
Ele saltou adiante, levantando meus braços para alcançá-lo. Eu lhe gritei um aviso em minha cabeça, mas ele não estava escutando. Ele mal tinha consciência de que sequer
eu estivesse lá.
Ninguém tentou detê-lo enquanto ele cambaleou na direção dele. Ninguém, exceto eu. Ele estava a centímetros de tocar nele, mas ainda não via o que eu via. Ele não via como o rosto dele havia mudado nos longos meses de separação, como tinha
endurecido, como os vincos agora puxavam em direções diferentes. Ele não via que o sorriso despreocupado de que se lembrava não se adequaria fisicamente ao novo rosto.
Somente uma vez ele havia visto o rosto dele tornar-se sombrio e perigoso, e aquela expressão não era nada comparada à ostentada hoje. Ele não via, ou talvez não desse
importância.
A envergadura dele era maior que a minha.
Antes de Gabriel poder fazer meus dedos tocarem nele, o braço de Sam girou subitamente e as costas de sua mão golpearam o lado de meu rosto. O tapa foi tão forte que meus pés saíram do chão antes que minha cabeça batesse com força no piso de
pedra. Ouvi o restante de meu corpo bater no chão com baques surdos, mas não senti nada. Meus olhos reviraram em minha cabeça, e um som de campainha começou a
reverberar em meus ouvidos. Lutei contra a tontura que ameaçava me fazer desmaiar.

Idiota, idiota, protestei. Eu lhe disse para não fazer isso!

--Sam está aqui. Sam está vivo, Sam está aqui. Ele agia de forma incoerente, cantando as palavras... como se fossem uma letra de música.
Tentei fixar os olhos, mas o estranho teto era ofuscante. Virei a cabeça para me desviar da luz e engoli um soluço quando o movimento mandou pontadas de agonia por toda a lateral de meu rosto.
Eu mal pude lidar com a dor daquele golpe espontâneo. Que esperanças teria de aguentar uma violência calculada, intensa?
Houve um arrastar de pés a meu lado; meus olhos se moveram instintivamente para localizar a ameaça, e vi tio Bob parado acima de mim. Ele tinha uma das mãos meio
estendida na minha direção, mas hesitava, olhando para outro lado. Levantei a cabeça
um centímetro, sufocando outro gemido, para ver o que ele estava vendo.
Sam estava andando em nossa direção, e seu rosto era o mesmo que o dos bárbaros no deserto — mas ele era bonito em vez de assustador em sua fúria. Meu coração hesitou e depois bateu irregularmente, e eu quis rir de mim mesmo. Que importava que
fosse bonito, que eu o amasse, se ele iria me matar?
Fitei o assassino em sua expressão e tentei esperar que a raiva triunfasse sobre a prudência, mas um verdadeiro desejo de morte esquivou-se de mim.
Bob e Sam se encararam por um longo momento. O queixo de Sam crispava e
distendia, mas o rosto de Bob estava calmo. O confronto silencioso terminou quando Sam de repente exalou uma lufada zangada e deu um passo atrás.
Bob abaixou-se para pegar minha mão e pôs seu outro braço em volta das minhas costas para me levantar. Minha cabeça girava e doía; meu estômago se contraía. Se não estivesse vazio há dias, eu teria vomitado. Era como se meus pés não estivessem tocando o chão. Bamboleei e me lancei para a frente. Bob me firmou e então agarrou
meu cotovelo para me manter de pé.
Sam observou tudo com uma careta de dentes de fora. Como um idiota, Gabriel se esforçou para ir na direção dele outra vez. Mas eu estava sob o choque de vê-lo ali e era menos tolo que ele agora. Ele não escaparia outra vez. Barrei seu caminho atrás de
todas as grades que pude criar em minha mente.

A Hospedeira/DestielOnde histórias criam vida. Descubra agora