Retornados

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Sem jamais ter realmente concordado em fazê-lo, eu me tornei o professor que Bob queria.

Minhas “aulas” eram informais. Eu respondia perguntas todas as noites após o jantar. Achei que, enquanto eu quisesse fazer aquilo, Dean, Doc e Bob me deixariam em paz durante o dia para eu poder me concentrar em minhas tarefas. Nós sempre nos
reuníamos na cozinha; eu gostava de ajudar a fazer pão enquanto falava. Era uma boa desculpa para fazer uma pausa antes de responder a uma pergunta difícil, bem como um
lugar para o qual olhar quando eu não queria encontrar os olhos de ninguém.

Na minha cabeça, parecia adequado; minhas palavras às vezes eram perturbadoras, mas minhas
ações eram sempre para o bem deles.
Eu não queria admitir que Jack estava certo. Obviamente, as pessoas não gostavam de mim. Não podiam gostar; eu não era um deles. Jack gostava de mim, mas era apenas alguma estranha reação química muito longe de racional. Bob gostava de mim,
mas ele era maluco. Os demais não tinham nenhuma desculpa.
Não, eles não gostavam de mim. Mas as coisas mudaram quando comecei a falar.
A primeira vez que notei isso foi na manhã seguinte ao jantar em que respondi às perguntas de Doc; eu estava na sala de banho escura, lavando roupas com Laila, Anna e
Jack.

— Poderia me passar o sabão, por favor, Cas? — pediu Laila à minha esquerda.

Uma corrente elétrica percorreu meu corpo ao som de meu nome dito por uma voz feminina. Estarrecido, passei-lhe o sabão e depois lavei o ardido da mão.

— Obrigada — acrescentou ela.

— De nada — murmurei. Minha voz falhou na última sílaba.

Eu passei por Anna no corredor um dia depois, a caminho de me encontrar com Jack antes do jantar.

— Cas — disse ela,cumprimentando-me com a cabeça.

— Anna — respondi, a garganta seca.
Logo não eram apenas Doc e Dean que faziam perguntas à noite. Surpreendeu-me ver quem eram os mais eloquentes: o exausto Joshua, o rosto de um tom angustiante de
cinza, mostrou-se infinitamente interessado nos Morcegos do Mundo Cantor. Alastair,geralmente silencioso, que deixava Anna e Uriel falarem por ele, era arrojado naquelas noites. Ele ficou um pouco fascinado pelo Mundo do Fogo e, apesar de ser
uma das histórias que eu menos gostava de contar, ele me crivou de perguntas até ficar a par de todos os detalhes que conhecia. Laila se interessava pela mecânica das coisas —ela queria saber sobre as naves que nos transportavam de planeta em planeta, os pilotos, o combustível. Foi para Laila que expliquei os criotanques — algo que todos eles tinham visto, mas que poucos entendiam a finalidade. Tímido, Kevin, geralmente sentado perto de Laila, não fez perguntas sobre outros planetas, mas sobre este. Como
funcionava? Sem dinheiro, sem recompensa pelo trabalho — por que a nossa sociedade de almas não se desmembrava? Tentei explicar que não era tão diferente da vida deles
nas cavernas. Não trabalhávamos todos nós sem dinheiro e não compartilhávamos o produto do nosso trabalho igualmente?

— Sim — interrompeu-me ele, balançando a cabeça. — Mas aqui é diferente... Bob tem uma arma para os preguiçosos.

Todos olharam para Bob que pestanejou, e então todos riram.
Bob estava presente praticamente uma noite sim outra não. Ele não participava;apenas ficava sentado pensativo no fundo da sala, sorrindo de vez em quando.
Ele estava certo sobre o fator entretenimento; estranhamente, pois todos tínhamos pernas, a situação me lembrou das Algas Visionárias. Havia um título especial para os
animadores lá, como Confortador, Curandeiro ou Buscador. Era o Contador de Histórias, de modo que a transição para professor aqui na Terra não foi uma mudança tão grande,
no tocante à profissão, ao menos. Era bem parecido na cozinha depois de escurecer, com o cheiro de fumaça e pão assado enchendo a sala. Minhas histórias eram algo novo, algo para pensar a respeito além do habitual: as mesmas tarefas suarentas incessantemente repetidas, os mesmos trinta e cinco rostos, as mesmas lembranças de outros rostos que
traziam com eles os mesmos pesares, o mesmo medo e a mesma desesperança que havia muito eram seus íntimos companheiros. E, assim, a cozinha estava sempre cheia para as
minhas aulas casuais. Só Becky e Karen estavam conspícua e conscientemente
ausentes.
Eu já estava por volta da minha quarta semana como professor informal quando a vida nas cavernas mudou outra vez.
A cozinha estava apinhada, como era comum. Bob e Doc eram os únicos que estavam ausentes — além das duas ausências regulares. Na bancada perto de mim havia uma bandeja de pães pastosos escuros, duas vezes maiores que o tamanho original. Estavam
prontos para o forno, assim que a bandeja em curso ficasse pronta. Anna verificava a cada poucos minutos para garantir que nada queimasse.
Frequentemente, eu buscava fazer Jack falar por mim quando ele conhecia bem a história. Eu gostava de ver o entusiasmo iluminar seu rosto e a maneira como ele usava
as mãos para fazer imagens no ar. Esta noite, Amara queria saber mais sobre os Golfinhos, então pedi a Jamie que respondesse às perguntas dela conforme pudesse.
Os humanos sempre falavam com nostalgia quando perguntavam sobre a nossa mais nova aquisição. Eles viam os Golfinhos como espelhos de si mesmos nos primeiros anos da ocupação. Os olhos escuros de Amara desconcertantes sob sua franja
escura, estavam cheios de simpatia quando ela fez suas perguntas.

A Hospedeira/DestielOnde histórias criam vida. Descubra agora