Capítulo 02

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Junho de 2015

Meses se passaram depois que despertei do meu coma. A ideia de que dormi por tanto tempo ainda não me foi muito bem aceita. Não é fácil acordar achando que tem dezoito anos de idade, quando, na verdade, está com vinte e sete, quase para completar vinte e oito. Além disso, saber que, no decorrer dos anos, pessoas mudam, se mudam, vão, voltam, tocam a vida, partem, etc. também não é algo tranquilo de se digerir. Mas chegarei nessa parte em breve...

Durante esse tempo todo, passei por tratamentos intensivos (bem intensivos por sinal) envolvendo fisioterapia, fonoaudiologia e até mesmo psicológico.

Aliás, minha mãe e a equipe médica – aqui incluo o doutor Horácio, que vi que era uma boa pessoa no final das contas – me informaram que meu acidente havia sido em dezembro de 2005, na noite da festa de formatura do meu Ensino Médio, e despertei em janeiro, bem no dia 25, aniversário da minha amada cidade de São Paulo.

Achei a data do meu retorno à vida bem simbólica. Mamãe falava que eu havia renascido. Era bonito fazer uma espécie de segundo aniversário juntamente com o lugar que adoro tanto morar. A propósito, desde o acidente e meu consequente coma, estive em um hospital na Mooca, bairro-distrito onde nasci e sempre vivi.

Falando na minha genitora, quase todos os dias ela vinha me visitar, inclusive me ajudava com partes do tratamento que realizei. Também me contava das coisas que aconteceram durante esses anos que passaram.

— O prédio... está quase a mesma coisa, filha! Você vai notar... poucas diferenças. Quase todo mundo mora ainda lá...

Notei que havia certa hesitação em sua voz, mas algo antes disso havia me chamado a atenção. Mamãe é uma mulher oriunda do Nordeste do Brasil, mais precisamente do estado da Bahia. A maneira de se expressar e as características físicas – como sua pele bronzeada – não negam suas origens. Contudo, seu sotaque estava diferente, ainda dava para identificar que ela era sim uma típica mulher nordestina, porém a forma como dizia as palavras parecia mais paulista do que baiana. Sinceramente, era uma pena isso. Na minha concepção, sua pronúncia, aliada ao cabelo liso e negro, dava um charme para a dona Maria das Dores, Dorinha para os mais íntimos, tão pessoal e exclusivo seu.

— Seu sotaque está mudado — falei tranquila e de forma pausada. Devido ao coma e à recuperação, adquiri este hábito, o que contrastava com aquela Ana Beatriz do passado, que proferia as palavras de modo tão acelerado.

— Tive que trabalhar muito, minha filha, principalmente de... uns cinco anos para cá...

A mesma hesitação e até um tom enigmático voltaram a permear a voz de minha mãe.

" Ela está me escondendo alguma coisa..." concluí em pensamento, mas não quis pressioná-la. Decidi retomar o assunto anterior.

— Então o prédio continua a mesma coisa? É bom saber que nem tudo muda, nem mesmo em um raio de dez anos. — Pisquei, brincalhona.

Mamãe riu e eu continuei:

— E as meninas? Como vão? Aquelas sem-vergonha nem vieram me visitar. Até parecem o nonno... — ri.

— Já falamos sobre isso, Ana Beatriz! — ela rebateu, séria.

Inexplicavelmente, meu avô, seu Francesco Fontana, nunca pôde me visitar. Ele é um homem com certa idade, sessenta anos para ser mais precisa (hoje imagino que estaria com setenta), forte, alto, um tanto gordo – a pancinha dele é impagável –, cabelos curtos e encaracolados e de pele clara. Pelo nome, nota-se as origens italianas de vovô, ou nonno, como gosto de chamá-lo e como ele gosta que eu o chame. Na verdade, é meu avô paterno, pai do meu pai. Um pai cujo nome era Dante Fontana e que nunca cheguei a conhecê-lo, já que havia falecido pouco antes do meu nascimento.

É pela amizade ou... A história das paulistANAsOnde histórias criam vida. Descubra agora