Ícaro Miranda
* Semanas antes *
Como explicar a minha vida em uma palavra... Desordem. Eu sou uma completa bagunça, assim como toda a minha existência. E sim, talvez eu seja um pouco frustrado por isso, ainda mais por ter a sorte que eu tenho.
Vamos desde o início... Eu cresci tendo apenas minha mãe, Suzana. Ela não tinha contato com a família, por isso nunca conheci nenhum dos meus parentes maternos. Pai? Nunca nem vi por dezenove anos da minha existência, o que coincidentemente é toda a minha vida. Legal, não? Não, não é legal. Eu passei a minha infância desejando ter uma figura paterna que me desse amor, que me ensinasse a andar de bicicleta, que me ensinasse futebol ou qualquer outro esporte. Queria apenas um pai, mas nunca tive um e essa é uma ferida que eu guardo no fundo do meu peito.
Também nunca tive amigos. Cresci em um bairro pobre e um pouco "barra pesada", então minha mãe me mantinha em uma bolha. Mas apesar disso, ela tentava ser a minha melhor companhia, o que eu devo admitir que foi. Podíamos não ter muito, mas ela sempre fez de tudo por mim. Inclusive se matou de trabalhar para me dar um bom futuro, mas de nada adiantou. Minha mãe morreu em um acidente de trabalho, ela trabalhava em uma fábrica. Um dia ela estava bem e no outro não existia mais. Isso me destruiu de várias formas, mas tive que engolir o choro, sufocar a dor e sobreviver.
Desde os quinze eu sou completamente sozinho. Após a morte da minha mãe, fui indenizado pela empresa e pude viver alguns meses com o dinheiro, até tudo acabar. Então eu cresci, arrumei um emprego e comecei a me sustentar. Com muito esforço terminei a escola, mas nunca pude ir para a faculdade. Ainda mais quando descobri a doença do coração. Sobre a hemofilia eu sempre soube, minha mãe tinha o maior cuidado do mundo comigo, já que eu nunca pude fazer o tratamento mais adequado e qualquer corte poderia ser o motivo da minha morte, por mais pequeno que fosse. Quando eu soube que meu coração não prestava, por assim dizer, eu realmente me dei conta de que nasci para ser uma chacota.
Pelos anos que se seguiram, eu dividia meu tempo entre trabalhar, comprar remédios e sobreviver. E deu certo, até um dia em que me cortei em meu trabalho como repositor em um supermercado. Não foi nem um corte para pontos, mas isso foi o suficiente para eu perder muito sangue e ser demitido. Pois é! O filho da puta do gerente decidiu que eu não poderia ficar mais lá, já que poderia morrer e a conta sobrar para a empresa. Eles me pagaram meus direitos, mas não foi muita coisa.
E foi nesse momento que eu decidi encontrar meu pai, pelo menos o doador da minha mãe. Ok, eu sei que ele não sabia de mim, mas eu mantenho uma mágoa, mesmo a culpa não sendo dele. Eu sabia que ninguém me daria emprego sabendo que eu estava doente, e eu não poderia esconder. Então peguei meus últimos centavos e investi em um detetive, o que graças a Deus me rendeu um bom investimento. O cara encontrou tudo sobre Ricardo, inclusive sua vida perfeita com a esposa e o filho tão esperado. Confesso que isso me deu um grande choque de realidade e quase me fez desistir.
Vim para o Rio há semanas, ficando em um hotel meia boca. Eu não sabia mais se era uma boa ideia ir atrás dele, até meu dinheiro acabar completamente, assim como os remédios. Eu sabia que ele poderia me negar, assim como me negar ajuda também, mas eu tive que arriscar. Apesar de ter uma vida horrível, eu não quero perder ela porque nasci fraco.
Sinto um toque em meu ombro e pisco algumas vezes, saindo dos meus devaneios. Ricardo está ao meu lado, na sala de espera do hospital enquanto esperamos ser chamados para o retorno da consulta.
- É a sua vez. - Ouço ele dizer e assinto.
Ele se levanta primeiro e eu faço o mesmo logo depois. Há alguns dias eu já estive aqui, para fazer os exames referentes as doenças que tenho e também realizar o teste de DNA. E não foi surpresa ele ser positivo, sendo sincero, eu até acho que nós dois nos parecemos. Acho que até Uriel se parece comigo... aquele irritantezinho. Ok, ele é fofo e bom, mas também me irrita e acho que isso é por mim, pois querendo ou não, eu sinto inveja dele. Sei que não é um sentimento bom, mas não posso mudar isso, não agora.
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Vogelfrei | Livro 02 - Trilogia Destinos
RomanceQual é o preço de ser livre? Tecnicamente deveríamos ser livres de graça, não? Mas, infelizmente, muitos vivem em prisões impostas pelos outros ou por si mesmos. E Matias é uma dessas pessoas, ele se encontra preso pela pessoa que mais ama e odeia...