Viver

347 14 2
                                    

Mais um dia.

Sonhar, sonhar... não querer acordar, mas ouvir o despertador às 5h40 chamando para a realidade.

Acorda, se arruma, arruma a filha, toma café correndo, pega o sobrinho, vai para a escola

Ops! Esta imagem não segue nossas diretrizes de conteúdo. Para continuar a publicação, tente removê-la ou carregar outra.

Acorda, se arruma, arruma a filha, toma café correndo, pega o sobrinho, vai para a escola. Aula, alunos chatos, alguns legais, colegas de trabalho enfadonhas...

Volta pra casa.

"Precisa comprar", "já acabou", "você já comprou?"...

A tarde, mais trabalho: planeja, corrige, planeja, corrige... ser professora não é mole...

Depois, estuda. Estuda, estuda, estuda... Pra ver se daqui um tempo consegue trabalhar um pouco menos. Ou dar aula para crianças menos chatas.

Um pouco mais tarde ainda, psicólogo. Consulta on-line:

_ Oi Lucy! Como está hoje? - diz a psicóloga, tentando uma proximidade que não temos.

_ Oi Renata. Estou bem. Cansada, mas o normal. - Respondo, sem grande entusiasmo.

_ Conseguiu manter o foco hoje?

Eu sei do que ela está falando... Eu ainda fico constrangida de dividir isso com alguém.

Aos 38 anos me descobri autista. Leve. Asperger. Bem lapidada pela vida, de tanto esconder isso e tentar me adequar ao mundo, mas ainda tenho minhas questões e, uma delas é o hiperfoco.

E eu me sinto ridícula com meu hiperfoco.

Hiperfoco é aquilo que, pra quem é autista, a gente fica vidrado em falar a respeito.

Falar, ler, assistir, fazer.

É aquilo que, se a gente pudesse, não fazia outra coisa. Se debruçava sobre isso 24 horas sem parar. É mais forte que a gente na maior parte do tempo e demanda um certo esforço para conseguir dar atenção para outras coisas... O sentimento as vezes é que estamos perdendo tempo com o resto...

Aos 38 anos eu descobri que meu hiperfoco é a música, dança, e todo o universo dos anos 80, mas mais especificamente... Michael Jackson.

E eu morro de vergonha de falar disso com a psicóloga e com o resto do mundo inteiro.

Bom, foi difícil assumir isso principalmente para o meu marido no início, apesar de ser inevitável ele notar. O diagnóstico só o ajudou a entender e não implicar tanto, ser compreensivo e tolerar bem minhas playlists intermináveis com inúmeras versões das mesmas canções.
Um ônus de ser fã de um artista que não está mais entre nós...

(Meu Deus... como é ruim pensar nisso!)

Como professora, mesmo antes de iniciar os atendimentos com a psicóloga, por lidar com crianças autistas e ter que estudar a respeito, eu mesma comecei a notar meus padrões de comportamento. Comecei a perceber que, após encerrar algumas atividades ligadas a musica e dança que eu fazia na igreja que frequentava, eu passei a preencher meu tempo ouvindo mais as músicas do Michael, que eu sempre ouvia, desde os 7 anos... Mas, quanto menos tempo eu passava envolvida com a dança e o canto, mais tempo eu passava com o Michael...  Quando o horário do trabalho do marido mudou para a noite, aí piorou tudo... o tempo que eu passava sozinha, preenchia-o passando este tempo com Michael, até eu não ter mais outro assunto, tal e qual quando eu tinha 13, ou 14 anos... até eu ser novamente uma enciclopédia ambulante sobre ele e falar dele como se o conhecesse da vida toda.

Mas de certo modo era isso, não era?
E por que com Michael? Por que ele?
Michael era um pacote completo de tudo que eu admirava: canto, dança, espetáculo, filantropia, poesia, reflexões... ele sempre me passou a ideia da complexidade que Deus derramou no ser humano, como seres capazes de criar, de transcender, mas sem esquecer de onde a criatividade vem, do dono da capacidade de criar...

Mas a psicóloga queria que eu controlasse, que eu tentasse manter o foco em outras coisas para dar ao Michael momentos específicos da semana, sem burlar os combinados.
E era isso que ela queria saber ao me perguntar se eu tinha "mantido o foco".
_ Não entrei no Instagram, e nem ouvi nenhuma música hoje. Acho que estou de parabéns. - respondi, sem entusiasmo.
_ E seus pensamentos? Como andam? - ela rebateu.
Droga!
_ Ah Renata... difícil... eu canto... mentalmente. Sempre tem uma música rolando na minha mente, uma história...
_ As histórias ainda insistem?
Era quase involuntário. Eu podia estar fazendo qualquer coisa, quando menos percebia, ele estava lá, rondando meus pensamentos. As vezes me pegava imaginando o que precisava ter acontecido para ele não ter acabado como acabou. As vezes ficava imaginando o que o inspirou a compor determinada canção. Outras vezes só ficava lembrando de como ele era bonito e não conseguia perceber isso.
Mas algumas vezes eu desenvolvia narrativas completas... começo, meio, e fim, diálogos, conflitos, situações... isso me rondava por dias. Eu passava horas pensando, ia dormir com um filme na cabeça.
Eu realmente tinha medo de estar desenvolvendo algum tipo de psicose.
_ Sim. As vezes histórias persistem.

A psicóloga continuava indicando atividades para eu manter a mente ocupada... como se eu tivesse tempo. Porque esse era o pior: eu não tinha tempo! Michael era minha distração que permeava meu dia, entre uma troca de aula e outra, entre o trajeto da escola até em casa, fazendo os exercícios na academia. Eu não parava para pensar nele: ele estava na minha mente enquanto eu fazia todo o resto, o tempo todo.
Isso realmente estava me deixando maluca.
Sério. Não era algo que eu ficasse bem...

_ Meu Deus... eu estou enlouquecendo! Esse homem nem existe mais! Esse Michael que eu sonho, que eu idealizo, ele ficou lá em 1987, 1989... eu tinha 5 anos! A gente está separado pelo tempo e pela geografia! Por que eu fico sonhando com ele desse jeito? - eu questionava.

Não me entendam mal... eu amava meu marido. Sem nenhuma sombra de dúvidas disso. Amava minha vida, minha filha, minha casa... era grata a Deus por tudo que ele tinha me dado. Não queria ter outra vida. Eu só queria que Michael tivesse tido a chance de ter tido outra vida.
Outro final.
Um final que fosse feliz.
Se eu tinha um amor platônico por ele?
Claro! Acho que toda fã tem...
Não sei se foi a Lady Gaga ou a Amy Whinehouse quem disse que não conseguia se decidir se queria SER Michael Jackson ou CASAR com ele. Sempre achei a definição perfeita.
Mas essencialmente eu queria ter a chance de mostrar a ele o quanto ele era bonito.
O quanto ele devia ter se protegido de algumas pessoas.
O quanto ele deveria ter sido cuidadoso com a própria saúde.
Eu dormia pensando nisso.
E sonhava com isso.
E era nos meus sonhos que isso acontecia, das formas mais incríveis. Centenas de vezes, praticamente todas as noites.
Era um um grande problema acordar e ninguém entendia porque eu queria dormir o mais cedo que pudesse.
Isso eu não tinha contado para ninguém, só Deus sabia. Mas eu estava pedindo a Ele que não deixasse mais isso acontecer, pois sentia que estava deixando a minha vida, a real, a vida de verdade, se esvair entre meus dedos.

Na minha cabeça, uma outra história me rondava nas últimas semanas... e era nela que eu mergulharia nessa noite, mais uma vez, como um vício, que eu já não conseguia controlar.

Michael Jackson - Living the DreamOnde histórias criam vida. Descubra agora