Conversa

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Século XXI
Realidade convencional

Visão de Ed - marido de Lucy

_ E aí Ed? Como está mano? Faz tempo que você não fala lá no grupo? O gato mordeu sua língua ou a Lucy te deu uma surra daquelas e te colocou no seu lugar? Hahahahaha!!!!

O Bruno tinha um modo bem peculiar de demonstrar sua preocupação. Mas ele era como um irmão. Um amigo que estava ao meu lado desde os tempos das dificuldades, quando eu e Lucy nem tínhamos certeza se daríamos conta de pagar o financiamento da nossa primeira casinha e eu nem sabia direito o que faria da vida para colocar dinheiro em casa.
Bruno era um cara com quem eu podia contar e para quem eu podia contar minhas dores e preocupações, e elas não me faltavam.

_ Fala mano velho! A Jessica que deve ter te colocado de castigo e você tá me chamando para pedir socorro... fala aí amigo. Bom falar com você.

_ Faz tempo que eu estou achando você meio caladão... a Lucy também nem fala mais lá no grupo dos veteranos... qual que é? Vocês estão bem?

O grupo dos veteranos era um grupo que tínhamos entre quatro casais de amigos. Quatro casais que se conheciam há mais de dez anos, e que tinham iniciado suas caminhadas praticamente juntos. Éramos parecidos tanto nas nossas formas de ver o mundo, quanto de ver a Deus, a igreja e a palavra. Trabalhamos juntos na igreja, tocávamos juntos, fizemos muitos eventos e missões na época em que éramos mais jovens. Aí vieram os filhos, as contas mais altas, os cargos mais altos, as obrigações mais sérias... cada um seguiu um rumo ministerialmente falando, mas a amizade seguiu firme e forte e nos víamos com certa frequência.
Mas eu e Lucy andávamos sumidos mesmo.
Andávamos sumidos de nós mesmos.

_ É... não andamos tendo muito o que falar. - disse, sem muita animação no áudio.

Para mim era difícil expressar. A gente não é criado para expressar sentimentos, ainda que o coração arda e a cabeça queira explodir de tanto pensar.

_ A Lucy ainda está distante? Você comentou algo comigo umas semanas atrás...

Eu não era de falar sobre minhas questões com a Lucy, não mesmo. Falava com o Bruno porque considerava ele um irmão e um conselheiro. Era um cara que eu podia contar até para orar comigo, quando eu já não tinha forças para isso.

_ É... eu... eu olho pra ela, sempre ocupada, sempre cansada. Eu sei que a escola desgasta ela num ponto absurdo cara! Ela trabalha demais! Isso sem contar a faculdade, e eu sei que ela faz isso para tentar melhorar, para ter um emprego melhor, ganhar mais... mas ela fica cansada. Aí ela quer relaxar e o modo dela relaxar é lá, com as músicas que ela gosta, os vídeos que ela curte... e eu entendo... mas, mano... - o que eu ia falar, doía tanto, que eu relutava até em pensar, mas era preciso por para fora - às vezes eu quero me aproximar e acho que vou atrapalhar.

Era uma confissão difícil a fazer. Lucy era uma mulher bonita. Aos seus 38 anos, ela era uma garota com um porte mais elegante do que tinha há 20 anos atrás. Geralmente era a mulher mais bonita dos lugares que chegávamos, não só pela sua aparência, mas pelo seu comportamento. Ela era refinada. Falava bem, se comportava com elegância, extremamente educada. Por conta do autismo, algumas vezes podia parecer um pouco esnobe - o que também lhe conferia algum charme, eu confesso - mas era apenas a primeira impressão. Ela apenas não conseguia se aproximar das pessoas. Tinha essa dificuldade de se conectar. Mas uma vez que estabelecia conexão, era uma pessoa leal. Uma amiga para a vida inteira.
Ela era minha companheira para a vida inteira. Mas eu sentia que a estava perdendo, e me sentia o homem mais ridículo e impotente do mundo porque eu a estava perdendo para alguém que não existia, como se eu a estivesse perdendo para ela mesma.

_ Pô cara... - iniciou Bruno em sua resposta - ela ama você, a gente sabe disso e você também! Ainda que ela esteja nesse momento introspectivo, talvez ela precise que você tente entrar no mundo dela.

_ Eu as vezes sinto que eu estou perdendo a Lucy para a cabeça dela, para o mundo que ela queria estar... não sei como faço para fazer parte disso com ela, entende? Eu amo a Lucy. Amo a minha vida com ela, amo a nossa história e amo o que a gente ainda vai construir... só estou... sei lá... sem imaginação. - confessei.

Depois de um tempo gravando o áudio, veio a resposta do Bruno, e eu sabia que seria uma paulada:

_ Cara... a Lucy sempre foi a mulher da criação, você sabe! Ela criava as peças de teatro, as coreografias do grupo de dança, os musicais, cantava no grupo de louvor, desenhava os figurinos... de repente, acabou. As aulas, a faculdade, a filha... tudo isso atropelou ela! A pessoa que era a criatividade em pessoa passou a apenas ser o operacional... uma hora isso ia pipocar. Você mesmo comentou que a coisa da música sempre foi forte para ela, desde pequena... bom, enquanto ela tinha onde colocar isso, acho que ela tava sob controle, e tem mais: você estava nessas coisas com ela cara! Você estava nos ensaios das peças, nos ensaios da banda... estava junto na vibe dela. Agora ela está sozinha. Se você ama essa mulher meu amigo, e eu sei que você ama, a única coisa que eu consigo pensar é que você tem que entrar na onda dela. Não adianta só tolerar. Porque tem coisa pior do que ser tolerado? Se eu sei que alguém me tolera, eu faço de tudo para não atrapalhar. Deve ser isso que ela está fazendo, está se isolando para não atrapalhar com as coisas dela. Se você mostrar que não é chateação, que você pode se envolver, que curte, você estabelece conexão, irmão. Você não vai perder sua mulher para alguém que nem pode ter ela, vai?

Eu sabia que o áudio do Bruno ia me dar uma surra.
Ele estava coberto de razão. Eu precisava estabelecer uma conexão com a Lucy, nem que eu precisasse decorar toda a discografia do Michael Jackson, nem que eu tivesse que pegar um empréstimo de milhares de vezes e levar ela pra assistir o musical na Broadway... eu não tinha ciúmes do cara... nem era isso. Eu sabia exatamente quando ela via alguma coisa mais "quente" dele e ela não me enganava, pois ela ficava bem mais animada, e por mim tudo bem, de verdade! Eu era o único que colhia os benefícios e não tinha problemas quanto a isso.
Mas o coração dela? Eu não queria dividir o coração dela, não nesse nível... não era um sentimento de posse. Eu queria vê-la feliz. Se estivéssemos falando de um cara real, um colega de trabalho por quem ela se apaixonou e que se apaixonou por ela, ok! Não ia querer ela infeliz ao meu lado. Mesmo que fosse o Michael Jackson real, aquele que ela assiste de camiseta prateada, que puxasse ela pro palco, se encantasse com ela, colocasse ela dentro de um avião e levasse ela embora, ok. Era real. Mas não estávamos falando de alguém real, e ver Lucy sofrendo por alguém que não existia, aparentemente porque achava que ele poderia ser para ela algo que eu não conseguia ser, me feria o ego sim, não nego, mas me entristecia por ela: Lucy era uma mulher incrível, e que acima de tudo, merecia ser feliz. Eu queria muito fazê-la feliz.
Eu não podia ser Michael Jackson. Nem queria ser.
Mas eu já tinha sido o amor da vida dela... eu precisava encontrar o caminho para voltar a ser, pois ela continuava sendo o amor da minha vida.

Michael Jackson - Living the DreamOnde histórias criam vida. Descubra agora