CAPÍTULO 23

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                   MELINDA OLIVEIRA


                   SETE DIAS DEPOIS


Os dias passaram em meio a uma bolha de confusão. Recebi a visita de um médico. Minha tia e irmã não saíram do meu lado, mas quase não vi Anthony. Eu sabia que ele dormia em casa porque minha tia dizia que ele chegava tarde e saía cedo para o trabalho. A nossa única conversa foi no banheiro. No entanto, mesmo à distância, ele nunca deixou de cuidar de mim. Eu desejava que ele estivesse mais presente, o seu afastamento me faz sentir um peso para ele, apenas uma obrigação, e deixava um gosto amargo na minha boca. Hoje é o dia da minha primeira consulta com uma terapeuta em quem posso confiar e relatar todo o martírio que sofri por meses.

Minha irmã e tia vieram comigo, me dando apoio e incentivo. Anthony contratou dois guarda-costas para ficarem ao meu lado em tempo integral, além dos que ele colocou no prédio. Agora, um segurança está dirigindo o carro. Ele tem uma expressão fechada, não fala muito e é muito forte. Seu nome é Tom; o outro é um pouco mais comunicativo e se chama Sérgio. Minha irmã está apertando minha mão o tempo todo, me confortando. Eu apliquei maquiagem para cobrir os hematomas que começam a desaparecer.

Quando chegamos à clínica, fomos recebidos por uma recepcionista muito gentil chamada Elena.

— Olá, senhorita Melinda. A Dra. Rose já a espera em sua sala. — Eu olho para minha tia e irmã, que sentam e me lançam um olhar amoroso. Sigo Elena com passos curtos e um aperto no coração. Quando ela abre a porta da sala e me apresenta, não estava preparada para ver uma mulher tão simpática, com um sorriso contagiante e acolhedor me esperando.

— Entre e sente-se, Melinda. Você é de uma beleza impressionante. Entendo o porquê do nome. — Sorrio para ela, lembrando das palavras de Anthony. Ele sempre diz que meu nome descreve como sou bonita.

— Olá, Dra. Rose. — Sorrio, querendo ser simpática. Ela começa com assuntos leves e, aos poucos, vou me abrindo, falando desde meus pais e percebendo o quão abusivos e negligentes eles sempre foram comigo. Percebo o quanto perdi.

Quando chego ao caso de Ricardo, relato o que aconteceu desde o começo.

— Por que você não o denunciou no início? — Ela me pergunta, sem um tom de acusação.

— Eu não tinha provas. Ele não tinha causado nenhum dano físico que mostrasse que ele me agrediu. — Me expresso envergonhada.

— Falando de mulher para mulher, o primeiro erro de quem sofre violência é achar que ela precisa ser apenas física, que é necessário ter hematomas e marcas para ter provas das agressões. E acabam esquecendo dos outros tipos de violência: física, emocional, sexual, econômica e psicológica. — Eu olho para ela sem entender.
— Existem várias formas de violência, resumidamente incluindo agressão física, ameaças, gritar para assustar e coagir, chantagem, intimidação e violência psicológica que causa danos emocionais, degradação, humilhação e manipulação. A limitação do direito de ir e vir, que você relatou ter sofrido muito. Também tem a violência sexual, que e o força uma pessoa a ter relações sem consentimento, e impedir o uso de métodos contraceptivos e envolve sexo mediante coação. Além disso, há a violência patrimonial, que é a destruição parcial ou total de bens, documentos pessoais ou qualquer coisa que pertença à pessoa. A violência moral envolve injúria, calúnia e difamação. Essas são apenas algumas das formas de violência listadas na Lei Maria da Penha, que visa proteger as mulheres. Portanto, meu bem, não devemos nos apegar apenas à violência física. Imagine se ele encontrasse uma forma de te manipular e te machucar mentalmente, e você ficasse presa a ele esperando que ele te machucasse fisicamente. Não devemos nos limitar somente à violência física, pois a violência psicológica é tão traumática quanto a física. É horrível quando alguém mexe com nossa autoestima, pois eles destroem uma parte importante de nós. Se nossa mente não estiver bem, todo o resto acaba falhando. — Eu nunca tinha pensado por esse lado. Sempre achei que violência seria apenas física e nunca imaginei que tudo o que destrói nosso bem-estar psicológico e nossa integridade também fosse uma forma de violência. Por isso, muitas vezes sofremos em silêncio, sem perceber o quanto estamos erradas e que não devemos nos calar.
— Você entendeu agora, Melinda? Nunca, jamais, querida, espere algo piorar para sair. Pois pode ser que você não tenha tempo. — E ela está certa. Deus sabe o que teria acontecido comigo se a polícia e a tia Carla não tivessem aparecido. Isso me causa tremores e um aperto no coração.
— Quando somos criadas em uma redoma de vidro, não enxergamos essa dimensão de perigo que nos espreita. Fui criada para ser uma esposa perfeita, para aceitar tudo o que vier. Nunca imaginei que não fosse assim.
— Pois é, Melinda, e espero que com nossas consultas, consigamos construir uma nova versão de você, uma mulher forte e determinada, que se ame em primeiro lugar e jamais aceite menos do que merece. Acredito que, juntas e com o apoio de sua família, chegaremos lá. — Continuamos a falar sobre as agressões físicas e psicológicas que sofri e saio de lá um pouco mais aliviada, com um peso a menos nas costas.
Eu não sou culpada pelo fracasso do meu casamento, não fui eu quem o destruiu. Meu casamento já estava condenado ao fracasso antes mesmo de ser consumado. Ricardo nunca me amou, ele apenas me usou. E espero que, com o tempo, todos os traumas e medos que ainda me acompanham sejam apagados e esquecidos. E como Rose disse, espero me tornar uma nova mulher.
Chego perto da minha tia e irmã, e elas me olham preocupadas.
— Vocês demoraram três horas lá dentro, Melinda. Ficamos preocupadas. — Diz Mia, me analisando.
— Acho que me excedi um pouco. — Sorrio timidamente para elas.
— Foi bom? — Apenas confirmo com a cabeça. Acho que ainda não estou preparada para dizer em voz alta tudo o que falamos naquela sala para outra pessoa. Preciso me curar primeiro para depois me abrir. E sei que o processo de cura é longo, e não estou falando apenas do corpo, mas também da minha mente. São traumas de meses, são coisas que nunca percebi o quanto realmente me afetavam.
Seguimos para casa em silêncio. Fiquei presa em meu próprio mundo, perdida em pensamentos distantes sobre como é a vida. Meus pais, que deveriam ter sido meus protetores, foram os primeiros a me lançar na cova dos leões e me deixar lá. Eles não tiveram nenhum pingo de compaixão por mim, não se importaram com como eu me sentia, apenas exigiram que eu não prestasse queixa, ignorando meus sentimentos e as feridas visíveis em meu corpo. Ainda me culparam, dizendo que a culpa era minha por ser uma qualquer. Acabo sorrindo amargamente enquanto limpo uma lágrima teimosa.
— O que foi, meu amor? — minha tia pergunta.
— Por que meus pais me odeiam tanto? — Tia Carla se assusta com a pergunta e vejo que o segurança Tom olha pelo retrovisor para mim. Mia também me olha assustada com o que eu disse.
— Como assim, Melinda? — Tia Carla pergunta.
— Minha mãe sempre me acusava de ser a culpada pelas agressões verbais ou até mesmo físicas que eu sofria, ela sempre dizia que eu não prestava. Eles só podem me odiar muito. Meu pai nem olha na minha cara. — Elas ficam caladas, olhando uma para a outra, mas depois nem dou a mínima.
— O que eu fiz para eles? — Sussurro só para mim mesma e continuo olhando pela janela do carro, presa em meus próprios pensamentos. Diferente da outra psicóloga, agora terei consulta semanalmente. Até estar me sentindo mais normal, eu acho.
Chego em casa e vou direto para o quarto que estou ocupando. Eu não tinha reparado o quanto ele é enorme e espaçoso, este apartamento tem 4 quartos, todos suítes, uma cozinha com todos os móveis planejados, integrada com a sala de jantar e a sala de estar. Você pode imaginar o quão espaçosa é essa área gigante, acredito que sejam dois apartamentos em um. Também tem uma varanda na sala de estar, que é a maior e tem uma mesa com 4 cadeiras. Me contaram que a suíte principal tem uma varanda quase do tamanho da varanda da sala, e também há uma varanda no quarto em que estou. Minha irmã e minha tia ficaram com os outros quartos, e o marido da tia Carla até fez amizade com Anthony.
Eu não explorei os outros cômodos, mas acredito que haja outro banheiro e um escritório, além da despensa e da área de serviço. Entro no quarto, que é espaçoso, tem um recamier, um banco estofado encostado na cama. O quarto é muito luxuoso, assim como o banheiro, que tem um chuveiro duplo. Me acomodo no banco, mas sinto vontade de ir até a varanda, então decido seguir até lá. Vejo duas cadeiras confortáveis com uma mesinha de vidro, a arrasto e me sento nela, suspirando. É possível até me reclinar um pouco. Diferente da fazenda, aqui tenho uma visão de vários carros passando pelas ruas, uma movimentação constante, o oposto do silêncio e dos sons dos animais noturnos. Aqui, ouço constantemente buzinas, o som dos carros, caminhões. Mas não me sinto incomodada. Nunca morei em uma cidade grande, aqui não é uma cidade grande, mas também não é pequena. Quando vivia com meus pais, morávamos no interior, então não havia tanto movimento contínuo assim. Ouço alguém batendo na porta e, logo em seguida, ela se abre.
— Estou aqui na varanda — falo sem saber quem seria.
— Espero que esteja apreciando a vista — Olho para trás e vejo Anthony, hoje vestido com um terno, e não poderia estar mais bonito. Meu coração vibra de alegria ao vê-lo, depois de tantos dias sem mantermos contato além de um "oi" e "tudo bem". Senti saudades dele. Acho que fiquei em silêncio por muito tempo olhando para ele como uma boba, porque ele continua.
— Essa vista é quase melhor do que a do meu quarto — ele diz se aproximando do vidro que cerca a varanda. Ele está com as mãos nos bolsos, a barba um pouco maior do que o normal, acredito que ele não tenha aparado nos últimos dias, mas isso não muda em nada a sua beleza. Esse jeito de homem de negócios me deixa quente, desvio meu olhar do corpo de Anthony, pois nunca ficamos sozinhos em um quarto e suponho que isso esteja mexendo comigo.
— Sim, é uma bela vista. Só estava pensando que é muito diferente do que eu estava acostumada — acabo narrando o que estava em meus pensamentos. Ele vira-se para mim com um olhar especulativo.
— E seus pensamentos chegaram a alguma conclusão? — eu olho para o rosto dele sem entender o que ele quis dizer.
— Vou reformular minha pergunta. Está gostando de estar aqui? Ou a longo prazo não se vê morando em um lugar um pouco mais movimentado? — desvio meu olhar do dele, não sei se entendi sua pergunta e meu pobre coração não aguenta mais decepções, então me limito a dizer.
— Estou gostando muito de estar no seu apartamento e agradeço por ter me acolhido aqui — ele sorri para mim e dentes brancos e alinhados aparecem, fazendo meu coração vibrar novamente. O bichinho bobo que se alegra com um sorriso. Mas não posso julgar, meu coração não é mesmo?
— Não precisa agradecer, Linda, é um prazer vê-la longe de todo aquele sofrimento, finalmente conseguimos — sorrio para ele, porque agora vejo o meu Anthony de volta, aquele por quem me apaixonei, e não esse cheio de dedos que anda pisando em ovos.
— Sim, nós conseguimos — sorrio timidamente para ele e logo desvio meu olhar quando meus olhos caem em sua boca. Lembro-me dos beijos roubados que tivemos no carro dele, e isso faz meu rosto ficar em chamas. Acho que ele percebe para onde estão indo meus pensamentos, pois ele pigarreia.
— Ah... hum... vou indo, só passei para saber como você estava. Deu tudo certo com a consulta? — ele pergunta virado de costas para mim, mas percebo que ele leva a mão ao rosto.
— Sim, muito obrigada. Amei a Rose. Ela me fez sentir confortável e confiei nela para falar sobre o meu passado — desta vez sou eu quem se retrai. Ele não se vira para olhar na minha direção.
— Certo, fico muito feliz por isso — e então ele sai do meu quarto sem se dignar a me olhar antes. Essa ação dele me desestabiliza, e fico ali sentada, perdida dentro da bagunça que sou.

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