CAPÍTULO 24

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                MELINDA OLIVEIRA

             TRÊS SEMANA DEPOIS

Hoje estou voltando da minha quarta consulta com a Rose e estou cada vez mais segura de mim mesma. Esses pensamentos arcaicos que meus pais sempre inseriram em minha mente, manipulando-me, estão aos poucos perdendo força dentro de mim. Ainda sou um poço de confusão e sentimentos contraditórios com tudo que sofri, mas aos poucos estou me sentindo bem. Os hematomas quase desapareceram por completo, as dores foram reduzidas e os pesadelos diminuíram bastante. Só aceitei medicamento para dormir levemente quando me encontro muito agitada.

Pode parecer que estou levando numa boa, mas choro dentro das consultas. Dói-me todo o pesadelo que passei. Só que não aceito, não quero e nem vou ficar no papel de vítima nunca mais. Vou levantar a cabeça e seguir em frente. Como Anthony me disse uma vez, tudo que passei foi para me tornar mais forte, e não será agora que vou me permitir quebrar, parar e me envolver em uma bolha de sofrimento. Quando finalmente conquistei minha tão sonhada liberdade.

Minha tia e minha irmã foram embora há três dias e agora me encontro sozinha por conta própria. Quer dizer, tenho o Anthony, mas quase não o vejo. Ele sempre chega quando já estou no quarto e sai antes mesmo de eu acordar. Não sei se ele tem me evitado ou se quer que eu me sinta confortável. Mas sinto falta do vínculo que tínhamos, e um pensamento muito doloroso tem me perseguido. Às vezes, tento escondê-lo em meu íntimo, mas não tenho controle quando sinto esse aperto em meu peito que me sufoca. Acredito que Anthony não sinta nada por mim, que ele só me acolheu por pena, que eu não significo nada para ele.
Minha tia me deu outro celular, ela encontrou o que Ricardo tinha me dado, mas eu não quis nada que viesse dele. Mesmo Anthony tendo meu novo número, ele não me manda mais mensagens, nem me deseja bom dia, boa noite, não passa para ver se estou bem. É raro nos encontrarmos, seu apartamento pode ser grande, mas moramos na mesma casa e nos comportamos como dois estranhos.

Eu sei que acabei de sair de um relacionamento conturbado, que sofri muito, mas eu já não amava Ricardo, não me importava com ele, e foi um alívio ele ter sumido da minha vida, espero eu, para sempre. Ainda não sei para onde ele foi, e como não pude prestar queixa, não estão procurando por ele. Mas segui o conselho da minha tia e irmã, solicitei uma medida protetiva com um advogado que Anthony indicou. Sim, Anthony ainda é meu salvador.

— Sérgio. — chamo o outro guarda-costas que está me acompanhando hoje.
— Sim, senhorita? — Eu sorrio para ele e ele retribui.
— Isso é cafona. — Acabo rindo alto e ele me acompanha rindo também.
— Ok, diga, Melinda.
— Agora sim... hum... será que podemos ir a uma sorveteria? — Olho para ele, temendo uma reprovação. Ele percebe meu desconforto.
— Claro que sim, Melinda. Não se esqueça que agora você é uma mulher livre. — Eu sorrio para ele, confiante.
— Então vamos à sorveteria. — Rumamos para a sorveteria e, pela primeira vez, senti o gostinho da minha liberdade.
Eu saí do carro, e Tom me acompanhou de longe, me deixando caminhar sem a sua presença, e foi maravilhoso. Eu pedi o meu próprio sorvete, como sempre, um cascão de bombom e chocolate, e me sentei em uma das mesas do lado de fora, onde tomei o sorvete com calma e até sorri feliz.

— Olá, garota, posso me sentar com você? — A mesma moça do caixa do supermercado perguntou.
— Claro. — Disse sorrindo. Ela se sentou e pediu um sundae para a atendente. Quando o pedido dela chegou, ela se lambuzou inteira com o sorvete, e tive que rir. Ela olhou para mim com uma expressão zangada.
— Desculpa, foi mais forte do que eu. — Eu disse, mas logo parei de rir e enfiei uma colher de sorvete na boca.
— Como se chama, moça do sorriso bonito? — Ela perguntou descaradamente, me fazendo rir ainda mais.
— Me chamo Melinda, mas todos me chamam de Linda. E você, qual é o seu nome, garota do sundae? — Ela arqueou uma sobrancelha e acabou colocando a língua para fora, revelando um piercing na língua.
— Liz. Meu nome é Elizabeth, mas não curto, é meio antigo, sabe. — Ela falou, arrancando outro sorriso meu.
— Você é meio doidinha, Liz.
— Já me disseram isso. E quem se importa?
— Você está certa, Liz. Devemos viver à nossa maneira. — Ela continuou se lambuzando com o seu sundae, enquanto eu tomava meu sorvete. Quando chegou na melhor parte, também fiz uma bagunça, pois adoro morder o cascão com o restinho do sorvete. Você pode imaginar a sujeira em que me transformei. Tive sorte que acredito que Sérgio pensou no que poderia acontecer e já me entregou alguns guardanapos.
— Obrigada, Sérgio. — Ele apenas sorriu para mim e saiu para ficar perto de Tom, digamos que a uma distância segura.
— Quem são aqueles dois gostosos ali em, sua safada? Não me diga que você está dando para os dois? — O resto do cascão que estava na minha boca caiu no chão quando ela soltou essas palavras indecentes. Eu engasguei e busquei por ar. Para piorar minha situação, Tom e Sérgio correram ao meu socorro, um me abanando sem saber o que fazer e o outro procurando por água, enquanto a maluca da Liz morria de rir. Eu estava mais vermelha do que um pimentão. Quando Tom apareceu com a água, eu agradeci e tomei metade do copo.
— Obrigado, Tom e Sérgio. Estou melhor... hum... acho que estava muito gelado. — Sorrio amarelo, e eles assentem com a cabeça e se afastam.
— Menina, o que você fez para ter dois gatões assim? Me passa a receita, que eu quero, de preferência os dois nus. — Olho para ela, não acreditando no que estou ouvindo.
— Digamos que eles são meus... hum... isso vai soar tão patético... — Escondo meu rosto em minhas mãos. — Eles são meus guarda-costas, ou seja lá como você quiser chamá-los. — Ela me olha séria e depois olha para eles, e vice-versa, várias vezes.
— Isso é sério? — Ela pergunta perplexa.
— Sim.
— Você é alguma atriz famosa? Filha de alguém importante? Já te vi algumas vezes, sempre acompanhada de uma mulher mais velha ou uma moça mais nova, ou um homem mais velho. Achei você tão tristonha e solitária que sempre quis me aproximar. Odeio ver pessoas tristes. Me lembra momentos da minha vida que prefiro esquecer. — Olho para ela e vejo um brilho de tristeza passar rapidamente por seus olhos, e ela os desvia.
— Importante? Não, quem me dera. Digamos que sofri um atentado, e bem, pessoas que se preocupam comigo querem zelar pela minha segurança, contando com a ajuda desses dois rapazes ali. — Aponto com a cabeça.
— Entendo. Então você está mais do que certa em ter dois brutamontes gatos ao seu lado, sem falar que é uma bela visão. Já viu a bundinha do de preto? Me abane. — Não consigo segurar e acabo rindo.
— Você é maluca.
— Na maioria das vezes. Mas me fala aí, se eu fingir um desmaio, eles vêm me socorrer? — Acabo gargalhando.
— Olha, Liz, eu não sei, mas se eu pedir com jeitinho, há grandes chances. — Ela levanta a mão no ar, e eu sorrio. — Passei por momentos tempestuosos esses dias, momentos em que achei que nunca mais voltaria a sorrir, e aqui estou eu, sorrindo com suas palhaçadas. Muito obrigada, Liz. Foi muito importante para mim reaprender a sorrir. — Ela me surpreende ao segurar minha mão que estava na mesa.
— Eu sei que pode parecer loucura, mas eu quero ser sua amiga, se você aceitar, é claro. — Ela diz sinceramente, e ali eu percebo que consegui minha primeira amiga. E dessa vez, não preciso ter medo de levar uma repreensão ou ter meu celular fiscalizado. Só preciso continuar vivendo.
— Claro que aceito, Liz. Eu adoraria. — Nós sorrimos uma para a outra e continuamos falando bobeiras. Rapidinho chegou a tarde, e ela teve que ir. Liz trabalha no mercado que o Anthony é dono, e é engraçado, não é mesmo? Ela disse que tinha um irmãozinho que dependia dela e que ele era tudo em sua vida. Trocamos Instagram e combinamos de nos comunicar pelo direct.

Voltei para o apartamento do Anthony, que agora era meu novo lar. Como sempre, estava vazio, nem a Marlucia estava na cozinha, onde eu costumava encontrá-la. Percebi que já passava das 7 horas, mas a comida estava preparada e havia um bilhete.

"Se alimente bem, Melinda. E espero que seu dia fora de casa tenha sido maravilhoso."

Sorrio para o bilhete. A Marlucia é como uma mãe que nunca tive, sempre se preocupando comigo. Mas decido que hoje não quero jantar. Subo para o meu quarto e resolvo tomar um longo banho. Quando me sinto revigorada, saio do banheiro vestindo apenas uma camisola e decido ir para a varanda do meu quarto. Fico sentada na cadeira, olhando para o céu. Aqui não é possível ver as estrelas, mas é lindo mesmo assim. Fico ali até quase pegar no sono. Quando estava me arrumando para dormir, já passava das 22:00, alguém bate na minha porta e, depois de alguns segundos, ela se abre. Eu nunca vi motivo para trancá-la, pois sei que estou em segurança. Anthony aparece com uma roupa descontraída, calça moletom e cabelos bagunçados, usando uma camisa branca. Ele está muito bonito, e meu coração idiota pula de alegria. Minhas mãos tremem e eu abraço meu travesseiro instintivamente.
— Olá, Melinda. — Ele parece constrangido.
— Olá, Anthony. Entre. Está tudo bem? — Pergunto preocupada. Para não parecer que estou com medo dele, coloco meu travesseiro no lugar. Ele então entra e vejo que está com uma bandeja nas mãos.
— Está tudo bem sim... Eu reparei que você não tocou na comida que a Marlucia deixou para você, e imaginei que talvez estivesse com fome. Então resolvi trazer esse copo de chocolate quente  com alguns biscoitos. — Ele me entrega a bandeja e se senta na poltrona. Eu olho para ele atônita. Me diga se tem como não se apaixonar por ele? Me fale se estou errada em ter entregado meu fraco e quebrado coração para ele. Tadinho do pobre órgão, está tão debilitado e insiste em bater por Anthony. Meu coração é mais resistente do que eu imaginava. Às vezes, acho que vamos ter uma briga feia para fazê-lo parar de ser bobo e bater por quem não nos nota. Mas aí vem Anthony, todo gentil, amigável, amável e carismático, jogando por terra todas as minhas barreiras que tento erguer para proteger esse órgão teimoso. “Coração idiota!”
— O que disse, Melinda? — Ele olha para mim sério. Merda! Eu disse alto. Minhas bochechas pegam fogo e desvio o olhar para a bandeja que está em meu colo.
— Muito obrigada. Foi muito gentil da sua parte. — Sorrio timidamente.
— Imagina, Linda. Sempre vou cuidar de você, enquanto me permitir. — Se você soubesse o quanto desejo mais do que seus cuidados, não teria colocado uma barreira entre nós. Começo a tomar meu chocolate quente.
— Está perfeito, uma delícia.
— Eu tenho que te mostrar qual é para você sempre pegar lá no mercado quando quiser. E por conta da casa. — Ele sorri, e seus dentes bonitos aparecem para me castigar novamente. Se eu não soubesse o sabor dos seus beijos, talvez não seria tão difícil estar perto dele e sentir o quanto estamos distantes. Onde foi que nós perdemos?
— Certo, vou cobrar, viu?
— Anotado. Tom e Sergio me disseram que hoje o seu dia foi produtivo. — Ele fala sorrindo, e gosto de não receber reprovação e sim incentivo.
— Sim, Anthony, foi maravilhoso. Nessa minha última consulta foi ainda melhor e me senti ainda mais livre para me expressar. Aos poucos, estou me sentindo livre das minhas amarras e isso não tem preço. E também conheci uma nova amiga, acredita nisso? Nem eu mesmo acredito.

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