O Conforto -24-

76 10 43
                                    

 Observo meu salvador o dia todo, enquanto o sigo pelo setor Alty de Los Ilhis. 

 Cada movimento seu é meticulosamente registrado na minha mente, mesmo os menores detalhes que passariam despercebidos aos olhos menos atentos.

 Por exemplo, notei que ele tende a iniciar a caminhada com a perna direita. Há um leve mancar que quase não se percebe quando ele está ao lado de Wilbur e de mim. Só noto quando ele se senta ou se levanta; há uma leve hesitação ao dobrar o joelho. Talvez seja uma lesão antiga que nunca se curou completamente, ou quem sabe uma lesão recente, resultado de uma queda.

 Essa não é sua única contusão. De vez em quando ele estremece quando move o braço. Depois de ele fazer isso umas duas vezes, percebo que deve ter uma espécie de distensão no antebraço, que dói quando ele o estende muito para cima ou para baixo. 

 Seu rosto é uma perfeita simetria, uma combinação de traços harmônicos escondidos sob a sujeira e manchas de terra. Um detalhe interessante é que seu olho direito é ligeiramente mais claro que o esquerdo. Inicialmente pensei ser um truque de luz, mas tive certeza que não era quando passamos por uma padaria e observamos algumas comidas expostas. E também, tem uma pequena linha quase que imperceptível no mesmo olho, como se fosse um corte. Me pergunto o que causou essas diferenças, se é algo de nascença ou resultado de algum evento específico.

 Além dessas peculiaridades físicas, noto outras coisas: ele tem um conhecimento impressionante das ruas afastadas do setor Ilhis, como se pudesse andar nelas de olhos vendados sem se perder. Seus dedos são incrivelmente ágeis ao alisar as pregas no cós da sua camisa. Quando olha para os edifícios, é como se quisesse gravar cada detalhe em sua memória, talvez para futuros usos que eu ainda não compreendo.

 É curioso que Wilbur nunca se refere a ele pelo nome. Assim como eles me chamam de Garoto, não há nada que identifique quem ele realmente é.

 Quando o cansaço me vence e fico tonto de tanto caminhar, o Garoto parece perceber minha exaustão sem que eu diga uma palavra. Com um gesto silencioso, ele para e vai buscar água para mim, permitindo que eu descanse. Sua atenção aos meus sinais de cansaço é reconfortante.

 É difícil expressar em palavras o que sinto quando estou com esses dois, mas, de alguma forma, sinto-me acolhido e confortável, até mesmo pelo Garoto mais velho (principalmente, mesmo sendo bastante frio). 

 Não era para eu me sentir assim... não depois da morte da minha irmã.

 A tarde começa a cair, trazendo um alívio temporário do calor opressivo do sol. Nos escondemos na área mais pobre de Ilhis, próximos aos vendedores do mercado, onde a sombra do toldo de lona nos protege. Wilbur estreita os olhos para as barracas, analisando atentamente o que está à nossa frente, mesmo estando a mais de quatro metros de distância.

 Wilbur é míope, mas de alguma forma, consegue distinguir as diferenças entre os vendedores de legumes e os de frutas, os rostos dos diferentes vendedores, quem tem dinheiro e quem não tem. Percebo isso pelas sutis expressões em seu rosto: a satisfação ao identificar algo, ou a frustração ao falhar.

 — Como você faz isso? — pergunto, intrigado.

 Wilbur me lança um olhar de relance, sua atenção mudando de foco rapidamente.

 — Hm? Quê? Fazer o quê?

 — Você é míope. Como consegue ver tantas coisas ao teu redor?

 Wilbur parece surpreso por um momento, e depois, impressionado. Ao lado dele, noto que o Garoto me observa rapidamente ao ouvir o que eu disse antes de Wilbur responder:

Cat and Mouse - Chaosduo QSMPOnde histórias criam vida. Descubra agora