Com falta de amor

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Para todas as garotas que, assim como eu, atribuíram o amor a suportar todos os entreveiros do caminho. Se o que vou falar agora puder ajudar alguém, então entenderei que valeu a pena.

Eu não o amava no começo, estar com Ethan era tapar o sol com a peneira. Era encontrar em alguém uma forma de satisfazer o que eu precisava no momento: amor (o meu, mais especificamente, mas eu não estava preparada para essa conversa na época).

Ama-lo foi a coisa mais difícil que eu já fiz na minha vida. Depois de pouco tempo de relacionamento estava convicta que o meu sentimento por ele era o mais puro e verdadeiro que eu poderia dar a alguém. Me convenci de que nunca seria capaz de sentir isso por mais alguém e, ter essa convicção, me fez conceder a ele um poder que eu jamais poderia ter entregue tão facilmente a outra pessoa. A pior parte do abuso é desenvolver a consciência de que eu sempre soube que era errado o que estava acontecendo comigo, mas que eu simplesmente entendi ser justificável.

Ele não quer me machucar, ele me ama.

Ele jamais me machucaria, se não me amasse o suficiente para querer mudar teria terminado.

Um dos pontos cruciais para mim foi perceber que eu nunca atribuí a mim mesma qualquer culpa sobre o que ele fazia, mas eu acreditava ser capaz de cura-lo de um problema que eu sequer sabia como lidar. Eu não cresci em um lar violento.

Eu justifiquei ser estapeada, empurrada, ter objetos voando constantemente em minha direção, ser arremessada contra as paredes, ser arrastada pelos cabelos. Até o ponto em que eu não poderia mais justificar, não seria possível fazê-lo e ter alguém acreditando em mim.

A primeira vez que encarei a face da violência doméstica eu sequer soube o porquê. Conversava com Carol no telefone, quando ela falou algo do qual achei graça, eu ri. A próxima coisa de que eu me lembre foi de sentir o impacto de seu copo cheio na maçã do meu rosto, enquanto todo o seu conteúdo escorria pelo meu tronco e caía sob meu sofá branco.

Eu não consegui compreender o que estava acontecendo na hora e fiquei petrificada por alguns segundos. 

Ao mesmo passo em que comecei a ouvir as suas desculpas o meu corpo reagiu instantaneamente e eu corri para pegar um pano e tirar o que quer que fosse aquilo do meu sofá recém comprado. Eu esfregava desesperadamente aquilo. Hoje eu compreendo que eu estava tentando apagar junto a dor que invadiu meu peito, enquanto eu caía na real e percebia o que tinha acabado de acontecer. 

Ser vítima de violência doméstica sempre pareceu ser algo pelo qual eu nunca passaria, sempre pareceu uma realidade muito distante da minha. A gente nunca coloca fé na capacidade das pessoas, até que ele me socou direto no rosto, dias depois.

Ele sempre tinha uma justificativa. Ele sempre se arrependia quase que instantaneamente do que tinha feito.

O seu ritual para convencer a si mesmo que estava tudo bem entre nós era me carregar até o sofá e me abraçar forte por algum tempo. O suficiente para poder convencer a si mesmo de que não era para mim o que o seu padrasto foi para sua mãe, eu suponho.

Era isso que eu queria consertar nele. Os traumas.

Naquela época eu não percebi, mas não há nada a se consertar nele: ser um agressor estava na sua essência. Ser um observador de violência doméstica pode: (i) ou te tornar uma vítima em potencial; (ii) ou te tornar um réu em potencial.

No caso dele, eu experimentei a face mais dolorosa de um relacionamento.

Eu cometi um erro grave quando o encontrei pela primeira vez: usei a sua presença para superar a dor do meu amor não correspondido. Talvez ele tenha tido ciência disso e, portanto, acreditou que me prender pelo medo e pelo amor seriam suficientes para eu não me afastar quando eu percebesse que para mim ele não era nada além de um step para meu coração partido.

Até o dia que ele me arremessou um vaso de planta direto no rosto e, logo em seguida, me atirou contra a parede. Para além de todos os hematomas já existentes pelo meu corpo, dessa vez ele quebrou o meu nariz, rasgou a minha iris com o impacto e, por muito pouco, não rasgou o meu globo ocular com os estilhaços da porcelana do vaso.

O arremesso contra a parede fraturou dois dedos da minha mão direita.

Eu fiquei imobilizada e quase cega.

Dessa vez foi completamente diferente.

Ter uma história e uma justificativa não seriam suficientes para afastar qualquer suspeita dessa vez. Agora eu tinha a marca de toda vítima de violência doméstica: um olho roxo.

Eu fiquei inconsciente, parcialmente, por alguns instantes. O suficiente para perceber o sangue escoando pelo meu rosto, por entre meus dedos. A dor que eu sentia por dentro, antecipando o que viria em seguida era infinitamente superior ao olho rasgado. 

Ethan me pegou no colo e me arrastou para o sofá, me abraçando e tremendo como uma criança com abstinência em doces. "Me desculpa" ele repetia incontrolavelmente, enquanto a sua mão tampava a minha boca "por favor, não grite". Ele não podia consertar isso e me implorar por perdão não iria adiantar dessa vez.

Ethan fez um rasgo muito profundo agora.

Eu ainda estou tentando costura-lo de volta.


Com (falta de) amor,

Helena Gambatto Kudiess.

Se ela quiser, eu também queroOnde histórias criam vida. Descubra agora